Artigo de opinião*
Em uma democracia, o Poder Executivo e o Legislativo são formados por meio da vontade popular, ou seja, do voto, manifestação direta da soberania do povo. O Poder Executivo nada mais é do que um representante da vontade popular, desse poder soberano, e deve atuar em concordância com o bem comum da nação, explicitado através dos artigos da nossa Constituição Federal de 1988. Portanto, esse governo deve ser controlado pelo povo, por meio de diferentes meios, ao contrário de uma autocracia ou uma ditadura, onde o poder é exercido de forma autoritária e o Estado e seu patrimônio se confundem com a figura e a personalidade do chefe de Estado, ou de interesses privados de grupos ou indivíduos. Segundo o pesquisador Carlos Estevam Martins (1989, p. 9):
“Democracia e controle não são termos antitéticos: todos os tipos de República (desde o puro e simples Estado de direito até o regime participativo mais amplo e irrestrito que se possa imaginar) são perfeitamente compatíveis com a instituição de sistemas eficazes de controle. O que, sim, não combina com a ideia de controle são os vários tipos de autocracia (desde os despotismos tradicionais ou carismáticos até os autoritarismos de base militar ou tecnocrática).”
Com isso, entendemos que não existe democracia sem accountability, e vice versa. Não existe democracia sem a devida prestação de contas pelo Poder Público para com a sociedade e sem o controle de suas ações. Esse controle deve ser aplicado tanto ao chefe do Executivo quanto aos funcionários da administração pública, independente do nível hierárquico que eles ocupam. A accountability pode ser exercida de diferentes formas, de forma interna ao próprio Estado, por meio de suas instituições de checks and balance, ou seja, as instituições que equilibram os poderes em uma República, ligadas ao Poder Legislativo (tanto federal, quanto estaduais e municipais), como os Tribunais de Contas (da União, estaduais, e nos casos particulares das capitais São Paulo e Rio de Janeiro, seus Tribunais Municipais); ao Poder Judiciário, por meio do Ministério Público, ou por instituições de dentro do próprio Poder Executivo, como em casos de Cidades que criaram suas próprias controladorias internas. Esse tipo de controle é chamado por alguns estudiosos do tema de Accountability horizontal, ou somente por controle interno, já tratado de forma excepcional neste artigo aqui.
O segundo tipo de controle que deve ser exercido sobre o Poder executivo é o controle social, realizado por instituições e organizações externas ao Estado, conhecido na academia por accountability vertical, também já mencionado em um artigo do blog (aqui). Cabe agora, uma breve revisão histórica do processo de formação da democracia brasileira a partir do estabelecimento da República e suas instituições, e como a prática do controle político e social, da accountability e a própria cultura democrática permearam esse processo e culminaram no status quo que presenciamos atualmente.
Processo de formação da democracia brasileira: uma breve revisão histórica
O governo provisório introduzido por Marechal Deodoro da Fonseca inaugurou o período republicano brasileiro e instaurou a chamada Primeira República, que tinha como função principal renovar a política nacional e assegurar a instauração do regime republicano; era composto basicamente por membros do exército. No âmbito da administração pública federal, a primeira república não trouxe consigo nenhuma modificação, ou uma renovação na estrutura burocrática brasileira; pelo contrário, o que se pôde perceber nas primeiras décadas do sistema republicano brasileiro foi um completo atraso em relação às outras burocracias espalhadas pelo mundo. A centralidade, o autoritarismo, a discricionariedade, a ausência de democracia, o patrimonialismo e o coronelismo nas instâncias menores de poder foram características herdadas do antigo regime e que se agravaram com o decorrer da República Velha, demonstrando um total atraso administrativo e a inexistência de qualquer ferramenta de controle das ações do Estado.
Na virada dos anos 1920 para os anos 1930, o Brasil passa por intensas transformações sociais e econômicas. A industrialização e a urbanização presenciada em diversas capitais mudou a forma como grande parte dos brasileiros interagia com a política, e esse processo tem seu ápice com o advento da era Vargas e a partir da promulgação da Constituição de 1934. Porém, a esperança de mais democracia e participação política durou pouco: um ano depois, em 1935, Vargas implementa uma violenta ditadura no país através do Estado Novo, cassa direitos políticos, fecha e dissolve o congresso, e, mais uma vez, fecha as portas do Estado brasileiro para o controle social.
Em contrapartida, no que se refere à administração pública, Vargas realizou uma verdadeira revolução na área, e transformou totalmente a burocracia federal, modernizando e profissionalizando a máquina para que a mesma atendesse aos interesses desenvolvimentistas e de aumento do papel do Estado na promoção do crescimento econômico e industrial. Para que esse projeto ambicioso pudesse ser implementado pelo governo federal, era necessária uma estrutura administrativa profissionalizada, meritocrática e moderna. Inserida no contexto político do momento, a reforma administrativa foi implementada de forma autoritária e centralizadora; além do alto grau de insulamento burocrático que as agências de governo sofreram para que não fossem atingidas por interesses externos ao Estado, sendo blindadas contra qualquer tipo de controle externo.
Após essas duas fases iniciais da República brasileira, durante as quais predominaram o autoritarismo, a ditadura e a quase inexistência de mecanismos de controle e accountability, temos, entre 1946 e 1964, um breve período de liberdade, classificado pelos estudiosos como Terceira República ou República Liberal; porém, mesmo nessa fase liberal ainda foi registrado momentos de perseguição política e cassação de direitos. Os presidentes que estiveram à frente do governo federal no período republicano liberal se preocuparam em reforçar e institucionalizar as reformas trazidas pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) na era Vargas. A meritocracia e o concurso público se tornaram padrão em quase toda a administração pública federal, o insulamento se expandiu e atingiu grande parte das instituições públicas brasileiras. As empresas públicas, que funcionavam como vetor do desenvolvimento nacional, também aderiram à política daspiana, profissionalizando seus quadros e sofrendo um forte processo de insulamento.
Essa tendência se estendeu até o final do governo João Goulart e se reforçou com o golpe Civil-Militar de 1964, quando se intensificou o processo de autoritarismo, forte centralidade administrativa, concentração de poderes ilimitados, falta de transparência, de participação democrática e controle social no governo. As poucas características democráticas e de accountability que o Estado e sua estrutura administrativa apresentavam até então, foram finalmente extintas a partir de 1964.
Com a chegada da década de 1980, o governo militar começa a dar sinais de desgaste, e o contexto político desse período mostrava que a transição para a democracia estava se aproximando. A promulgação da atual constituição, em 5 de outubro de 1988, foi o marco temporal que deu início à Quinta República e ao período democrático no qual vivemos atualmente. Ademais, a CF 88 trouxe consigo um desafio para a gestão pública nacional: reformar a máquina herdada do período militar, corrigir os danos por ele causados e realizar esse processo dentro do trâmite democrático, havendo abertura para negociação com os amplos setores da sociedade e, principalmente, a instalação de mecanismos de controle interno e externo da máquina pública. O próprio processo de formulação da Constituição de 88 se deu dessa forma, mostrando assim uma evolução política no país pós-ditadura.
A CF/88: um novo momento histórico para o controle político e administrativo do Estado
A CF 88 trouxe, além de um novo paradigma democrático para o país, um novo momento histórico para o controle político e administrativo do Estado. A accountability – tanto a vertical, quanto a horizontal – se tornou uma realidade, as instituições de controle da República começaram a ser respeitadas, equilibrando poderes e fiscalizando as ações do executivo em suas diferentes escalas administrativas e federativas, no que concerne ao controle social. A democracia trouxe novas instituições e formas de controle e accountability por parte da sociedade. A constituição institucionalizou uma cultura participativa do povo brasileiro que historicamente se mostrou muito forte, trazendo os movimentos sociais para dentro da gestão das políticas públicas, para a formulação dos programas, para o debate orçamentário e para o controle dessas políticas e da sua implementação. Além de criar novos mecanismos de acesso à informação e de transparência, impulsionados pela revolução tecnológica do século XXI.
O contexto político contemporâneo é favorável à democracia e à accountability, porém a luta ainda está longe de acabar. Ainda é possível presenciar setores conservadores da sociedade e da elite política e econômica que lutam para ceifar os mecanismos e as instituições republicanas de controle, com o objetivo de trazer de volta o passado mais abjeto de autoritarismo, arbitrariedade, clientelismo e repressão do país. Cabe à sociedade civil organizada e aos setores progressistas da nação defenderem a democracia e suas instituições; acompanhar o dia a dia da política brasileira, dos seus representantes eleitos pelo voto popular, tanto no Executivo, quanto no Legislativo; cobrar transparência e acesso à informação pública e que os canais para esse acesso sejam cada vez mais aperfeiçoados e potencializados, para que a accountability se torne uma cultura hegemônica e incontestável no Brasil moderno. Assim não podemos aceitar a volta ao passado ditatorial.
Portanto, a gestão pública não se faz de forma insulada ou fechada, ela deve ser aberta, bem capacitada e deve apresentar uma estrutura institucional focada na participação popular e que promova a interface entre o Estado e a sociedade, para que a população possa participar do controle dos gastos e de todo o processo de gestão das políticas, exercendo seu poder soberano, apresentando as reais demandas da sociedade e exercendo a verdadeira democracia.
Bibliografia
ESPINOSA, R. M. Accountability. In: Castro, C. L. F; Amabile, A. E. N; Gontijo, C. R. B. (Org.) Dicionário de Políticas Públicas. 1ª ed. Barbacena: EdEUMG, 2012. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/13076. Acesso em: 18 Jan. 2022.
LOUREIRO, M. R; ABRUCIO, F. L; PACHECO, R. S. Burocracia e Política no Brasil: desafios para a ordem democrática no século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
MARTINS, C. E. Governabilidade e controles. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, RJ, v. 23, n. 1, p. 5 a 20, 1989. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9174. Acesso em: 20 jan. 2022.
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Rodrigo Sanches possui graduação em Gestão de Políticas Públicas pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (2015) e Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política (PROMUSPP) também pela EACH/USP (2021). Dentro do PROMUSPP, foi membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Gestão Participativa, linha de pesquisa em Planejamento e orçamento participativo em políticas públicas, entre 2018 e 2021. Estuda com maior profundidade os movimentos sociais e o movimento negro brasileiro, além da história das políticas afirmativas no Brasil e seu processo de construção.
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Rodrigo SanchesTags:
Accountability, Democracia, Matérias