Da origem do cisne cinza

Renato Fenili

11 set, 2024 ● 11 minutos

*Artigo de opinião

Visões sobre a reforma estrutural do Estado de São Paulo

Desde as primeiras linhas deste texto, preocupo-me em afastar do que, em um dia de menor rigor científico, poderia ser chamado de “síndrome do almoço requentado”.  De arredar-me da sedução própria ao cheiro de páginas de livros antigos, e de buscar, sempre, a fragrância desconhecida da inovação, dos ares renovados. O desafio, contudo, é o de criar fachos de luz, insights, em temática secular, tão estudada e revisitada: o próprio cerne motivador das organizações humanas e, para além, o ímpeto de sua modernização

Iniciemos, contudo, com as páginas amareladas, com o seu acolhedor aroma de café-baunilha, um terreno bem conhecido para nosso passo seminal.

Uma organização é, para os fins desta sintética discussão, um grupo de pessoas que trabalham juntas visando à consecução de objetivos comuns. Para tanto, dispõem de recursos, tangíveis e intangíveis (mas sempre finitos!), interagem com o ambiente externo, executam tarefas e processos variados, projetos, e se inserem em uma cultura multicamada - global, nacional, regional, do nicho de mercado e, obviamente, organizacional. Pronto. Esse é um ponto sobre qual, talvez (e apenas talvez), haja consenso.  A partir disso, lidamos, já no segundo passo, em definir como administrar essa organização. E logo nos deparamos com os dissensos.

Qual o melhor modo de estruturar - ou seja, de dividir as responsabilidade e as autoridades nessa organização? De gerir os seus recursos de pessoal? De lidar com o ambiente? Com a tecnologia? O que é mais relevante: meios, fins, processos, objetivos, projetos, pessoas? Infelizmente, não se pode priorizar tudo, já que não se consegue sobrepor o paradigma do cobertor curto. As respostas habitam as nominadas teorias administrativas, que remontam o início do século XX.

A solução a cada uma dessas questões implica, diretamente, a concepção de práticas e de estruturas organizacionais distintas. E de teorias também distintas, cuja imersão cronológica tem o seu ponto de partida em 1900. Para Taylor, o mais relevante eram as tarefas. Para Fayol, a estrutura em si. Ainda na tríade da Administração Clássica, Weber trouxe a divisão racional do trabalho, a especialização. Coube a Mayo distanciar-se das acepções mecanicistas, introduzindo as relações humanas organizacionais como fulcrais. A primeira visão econômica, justificadora da própria existência das organizações, é de lavra de Coase, com a Teoria dos Custos de Transação, já na década de 1930, cuja lapidação deu-se quarenta anos depois, com Williamson.

Bertalanffy introduziu o foco no ambiente externo, inaugurando a ótica de sistemas abertos, sendo seguido por autores como Ashby, Katz e Kahn. A busca pela legitimação organizacional, via processos de isomorfismo coercitivo, mimético e normativo, encontrou guarida nos escritos de Selznick, Simon, March, entre outros, em meados do século, e deram substância à Teoria Institucional, que, anos mais tarde, já nos idos de 1980, viu-se com novas roupagens em domínios políticos, históricos e econômicos, na vertente neoinstitucional de Meyer, Rowan, DiMaggio e Powell. Coube a Peter Drucker revisitar o classicismo de Fayol, apondo realce na busca por objetivos, e na ordenação lógica do processo administrativo, dando azo à Teoria Neoclássica.

E, no final dessa mais que apertada incursão, temos a Teoria Contingencial de autores como Woodward, Lawrence e Lorsch, que trouxe a necessidade de flexibilização estrutural como forma de bem performar em um contexto em franca mutação. Perspectivas pós-modernistas seguem em franca seminação e desenvolvimento, transitando dicotomicamente entre os limites da organicidade comportamental-cultural e da racionalidade mecânica, raramente sendo superados por visões praxiológicas, tais como a de Giddens e de Bourdieu.

O texto, contudo, não se voltará a cotejar teorias, a adentrar em um século de conhecimento que moldaram e moldam o que se chama de ciência da administração. Os holofotes acenderão em zona antecedente, uma zona assaz adormecida na senda nacional, assenta-se, com certa ousadia. Direcionemos nossas lanternas à dinâmica das estruturas organizacionais na administração pública brasileira. E, conjeturo, o uso do verbete “dinâmica” poderia, em algumas linhas, germinar um paralogismo: melhor seria me valer da aspereza de palavras como “inércia” ou “estaticidade”.

Atribui-se a Drucker a reflexão de que o propósito de qualquer empresa é criar e obter um cliente. No setor público, ao revés, a organização já nasce para atender clientes que a precedem, e que dela dependem. Não disputa, como regra, seu market share, e não realiza vendas de bens. A organização pública, como dominante estereótipo, continuará existindo como prestadora de serviços, independentemente de seu desempenho. A busca por vantagem competitiva, pois, tão central ao segundo setor, é estranha ao primeiro. 

O corolário é o de que a inovação no Estado decorre de um dever constitucional de eficiência, mas não de sobrevivência organizacional. O ímpeto de modernização passa a transitar em um campo volitivo - principiológico, traço que suscita um gosto bastante etéreo. Convive-se, pois, com lampejos de forte inovação em práticas - especialmente no bojo de governo digital -, envoltos em uma camada normativa-estrutural digamos.... mais letárgica.

O Decreto federal nº 5.450, de 2005, já revogado, permaneceu por 14 anos regulamentando o modo como se fazia pregão eletrônico na União, sem ter sofrido uma única alteração nesse interregno. A organização da Administração Pública Federal tem seu esteio normativo no Decreto-Lei nº 200, ainda vigente, que, neste ano, completou 57 anos. O Código de Processo Penal, dando fecho a essa diminuta amostra, é estatuído por um Decreto-lei que comemorará, em outubro, seu 83º aniversário, e segue em plena saúde. As multas e as custas penais são cobradas em réis.... São apenas exemplos, vívidos entre incontáveis outros, que fazem da Administração Pública uma cediça trincheira para o empreendedorismo.

Injusto seria, contudo, apontar a estagnação plena nas práticas previstas em regramentos. A Administração Pública brasileira evoluiu significativamente, em passado recente, na edição de leis e decretos alusivos a matérias como governança, transparência, proteção a dados pessoais, licitações e contratos administrativos, igualdade de gênero, entre outras. O avanço normativo resvala, entretanto, com a capacidade efetiva de implantação dessas práticas, dando origem ao que se nomina slippage (ou, em tradução livre, escorregamento) entre o que se preconiza e o que se executa. Afinal, habita o nosso imaginário (real) coletivo o fenômeno da “lei que não pegou”, ou, em tom de suavização, a “lei que ainda não pegou”, algo surpreendente em um estado de direito.

A tese aqui posta tem assento em quatro premissas, a saber.

  1. Uma organização pública presta, como regra, serviços;
  2. Os serviços são prestados via processos;
  3. Os processos correm nas estruturas organizacionais;
  4. Práticas e processos otimizados, em concepção normativa, implicam, ao menos em parte, a modernização administrativa.

Premissas postas, a hipótese é única: a estrutura é variável moderadora entre práticas / processos otimizados e a modernização administrativa.

reforma estrutural

Nessa condição, estrutura é variável que atual modificando a intensidade entre concepção normativa de práticas e/ou de processos otimizados e a modernização administrativa. Em palavras outras, a estrutura satisfatória possibilita tal predição. A insatisfatória poderia, no limite, anular a probabilidade de se galgar a modernização da máquina pública.

O óbice passa a residir no anacronismo das estruturas do Estado. Falamos de implantação de práticas de governança e de transparência, discussões que tomaram fôlego na última década, mediante estruturas que se mostram rígidas há muito mais tempo. Neste ponto, a teoria institucional, com suas conhecidas atrofias, é adequadamente aplicada: o congelamento das estruturas é fenômeno bem explicado, mas o descongelamento, não. Acurada a visão de Berger e Luckmann, transposta ao assunto em análise: o homem cria estruturas e as experiências como se fossem algo dado, inumano, tal como a lei da gravidade.

O “descongelamento”, pois, é dado, em maior ou em menor grau, com a ruptura do status quo sedimentado, via, novamente, um comando normativo amplo. Mudar uma estrutura organizacional é sobremaneira esporádico. A desinstitucionalização é rara, cara e preciosa. É ocasião de se inovar no substrato que impulsiona os processos, de se adentrar em um estágio, comprimido no tempo, de “destruição criadora”, na vertente schumpeteriana. Agora, se reestruturar um singelo órgão ou entidade já é invulgar, reestruturar todo um Estado aproxima-se do esperado ineditismo de se vislumbrar o cometa Halley.

O Estado de São Paulo acaba de ingressar nessa empreitada.

Como desdobramento da Lei Complementar nº 1.395/23, editou-se o Decreto Estadual nº 68.742/24. Designou-se a Secretaria de Gestão e Governo Digital como órgão central de gestão e governança das estruturas, incumbido da tutela do recém-criado SIORG. E, a partir de setembro, cumpre-se um cronograma para 39 órgãos e entidades, entre secretarias e autarquias, remodelarem suas estruturas. Cada unidade terá um novo decreto de estrutura organizacional, até meados de 2025. Anunciado, pois, o nosso cometa.

O que se desnuda é agigantada oportunidade, a ser capitaneada com profissionalismo, visão sistêmica e senso de futuro. Afinal, as estruturas ora em edificação não devem se restringir a atender o hoje, mas sim a prover ferramental para que o Estado possa, nos próximos anos, bem desempenhar suas funções. Em francas e poucas palavras: toma curso a reforma mais profunda do Estado de São Paulo, umbilical, medular. O seu resultado será sentido em curto, médio e longo prazos. Novas reestruturações ocorrerão, mas não em brevidade, haja vista o impacto de implementação. O quanto cada Secretaria irá privilegiar, em seu mister, de tarefas, ambiente externo, especialização, pessoas, contingências, legitimação, flexibilidade, objetivos, projetos? A resposta já se encontra em produção. O resultado? Malgrado em rascunho, a releitura enseja progresso. Cabe buscar sua maximização.

É atribuído a Nicholas Taleb, professor emérito de gestão de riscos da Universidade de Nova Iorque, a gênese do conceito de cisne negro, terminologia referente a eventos que guardam três características:

  1. São desconhecidos aprioristicamente, e, portanto, atípicos e inesperados;
  2. Uma vez ocorrendo, geram enorme impacto, com sensíveis ramificações;
  3. Após sua ocorrência, passam a ser retrospectivamente previsíveis, em especial devido à natureza humana de conceber explicações.

Valendo-me de uma pitada de dilatação conceitual, podemos dizer que, historicamente, a atipicidade de se instituir toda uma reestruturação estatal, disruptiva em seu âmago, situa-se em algum ponto entre o inesperado e o impossível. Mas, uma vez tomada a decisão, passa a haver certo nexo lógico na ação. Um cisne negro - do bem, digamos. 

Aos mais atentos, inobstante, a modernização diligenciada e perseguida demandava por tal medida. Passou a reverberar em ações como o decreto instituidor do programa São Paulo da Direção Certa, que já apunha sementes a uma vindoura reforma administrativa. O impossível, vivam os paradoxos, era, de certa maneira, previsível. E o conceito empregado é o de suavização de cores: vivemos, assim, a evidência de um cisne cinza, conforme bem estampa a literatura da área. Por hoje, há de se reconhecer sua origem, e perseguir a melhor de suas ramificações.


Autoria: Renato Fenili é Subsecretário de Gestão do estado de São Paulo e Presidente da Comissão de Transição da Nova Lei de Licitações e Contratos no mesmo estado. Ex-Secretário Nacional de Gestão. Também é doutor em Administração, professor, escritor e palestrante.


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