A Gestão do Patrimônio Público e Cultural na Administração Pública

13 set, 2021 ● 6 minutos

Confira a entrevista de Danielle Sousa, pesquisadora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

 Qual a relação entre o patrimônio público e o trabalho de gestores que atuam na Administração Pública? O que diferencia um patrimônio cultural e um patrimônio público? No dia a dia, os servidores que lidam com estas questões devem possuir clareza para discernir conceitos e estar atentos às demandas sociais que envolvem o tema.

A correta gestão estatal de patrimônios públicos e culturais é essencial para o aprofundamento histórico da Gestão Pública e para o encaminhamento de políticas públicas eficazes. Para além disso, perceber as relações entre patrimônios culturais diversos e o trabalho da Gestão Pública permite o entendimento de que o Estado trata, diariamente, de temas que vão muito além de demandas operacionais, sendo o fomento à cultura e ao saber histórico parte integrante do trabalho de muitos servidores.

Confira o que Danielle Sousa, pesquisadora do IPHAN, tem a dizer sobre o assunto!

Pergunta: Qual a diferença entre patrimônio público e patrimônio cultural?

Resposta: 

Creio que a diferença fundamental entre patrimônio público e patrimônio cultural se encontra na questão do pertencimento, em sentido estrito. Enquanto no primeiro, a União, os estados ou os municípios detém o bem, por conta de seu uso, função ou interesse coletivo, que pode passar por estradas, rios, o mar - ou seja, bens públicos que podem ser utilizados pela população sem consentimento -, até construções públicas como hospitais, escolas, cemitérios, etc. Já no patrimônio cultural, por sua vez, o Estado não possui, necessariamente, a propriedade do bem, continuando ele sobre administração, conservação e propriedade de quem o detém, seja ele um casarão histórico ou uma manifestação cultural como uma festa ou um ritual, por exemplo.

Dessa forma, o patrimônio cultural possui uma concepção mais abrangente e relacionada a outras questões que ultrapassam aquelas ligadas ao patrimônio público, ainda que possa compreender bens públicos como objeto de preservação. No Brasil, as políticas públicas de patrimônio cultural têm seu início marcado no tempo-espaço. O primeiro instrumento legal foi o decreto lei nº 25 de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico do Brasil, do qual fazem parte bens móveis e imóveis que estejam ligados a “fatos memoráveis” na história do país ou que sejam considerados em sua “excepcionalidade de valor”, seja ela arqueológica, etnográfica e paisagística, histórica, de belas artes ou de artes aplicadas. 

Mais recentemente, há o Decreto nº 3.551/2000, que institui o Registro de bens culturais de natureza imaterial, que é um instrumento legal de preservação, reconhecimento e valorização de manifestações culturais consideradas de natureza imaterial, como saberes, celebrações, formas de expressão e lugares que possuem relevância para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira. Esse decreto vem para reafirmar o que já estava previsto no artigo nº 216 da CF/88.

Pergunta: Há participação popular nas políticas públicas de patrimônio?

Resposta:

As discussões sobre participação social nas políticas públicas, de maneira geral, são recentes, sendo crescentes a partir dos anos 80 e 90, por conta do aumento da presença e das demandas de movimentos sociais em busca de direitos. O campo do patrimônio não está isento do momento histórico em que essas pressões são feitas e, assim, ele também responde à essas demandas que são apresentadas pela sociedade, principalmente por grupos que fazem parte de minorias sociais e políticas que querem ter acesso ao direito à memória, à identidade e ao reconhecimento da sua relevância como patrimônio cultural diante do Estado.

Nas políticas federais de patrimônio cultural, que são executadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a participação social está mais consolidada nos processos de patrimonialização de bens culturais de natureza imaterial, onde instrumentos jurídicos preveem a participação da comunidade em todas as fases dos processos de execução das políticas de Registro e Salvaguarda dessas manifestações culturais. Um dos pontos interessantes das políticas de patrimônio imaterial é trabalhar com a noção de “referências culturais”, compreendendo que, para além da relevância nacional da manifestação cultura que se quer preservar, ela precisa primeiramente constituir-se como referência para a própria comunidade onde ela está localizada, por quem a produz e reproduz cotidianamente.

Um dos objetivos da participação social nas políticas públicas de patrimônio é que sejam mobilizados diversos órgãos e atores sociais nos processos de identificação, reconhecimento, fomento e preservação do patrimônio cultural brasileiro, envolvendo não somente o governo federal, como também em articulação com os estados e municípios, em contraposição ao modelo de gestão centralizada. Ainda mais recentemente, a questão da gestão compartilhada do patrimônio tem sido levantada também nas políticas de tombamento de bens materiais, principalmente por conta das especificidades e dinamicidade do patrimônio cultural de povos e comunidades tradicionais de matriz africana, que se destacam na figura das religiões afro-brasileiras, que possuem onze terreiros tombados pelo IPHAN até o momento. 

Pergunta: Quais estratégias a Administração Pública deveria ter para que a área de patrimônio fosse mais valorizada e tivesse políticas públicas mais eficazes?

Resposta:

A gestão compartilhada é uma boa forma de começar desenvolver não somente a participação social, como mencionei antes, mas também de envolver diversos setores da sociedade em espaços coletivos de deliberação, como comitês gestores, conselhos consultivos formados por integrantes da sociedade civil, entre outras formas de organização. É um desafio para a administração pública, mas é possível. Acredito que o fortalecimento da participação social é também o fortalecimento das políticas públicas de patrimônio. O Estado brasileiro precisa garantir aquilo que prevê nos acordos internacionais dos quais é signatário, a exemplo da Convenção nº 169 da OIT, da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da Unesco, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial também da Unesco, entre diversos outros documentos. Da mesma forma, acredito que a eficácia da administração pública também se encontra em o Estado cumprir também aquilo que afirma na Constituição Federal de 1988, em seu artigo nº 216, ao tratar sobre a proteção aos remanescentes de quilombos, por exemplo, ou sobre o direito à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Trata-se de fortalecer também o acesso a lugares de cidadania e, nesse aspecto, valorizar a diversidade cultural, é um ganho para a sociedade como um todo. 

Danielle Sousa: É pesquisadora e mestranda do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), bacharela em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e consultora de educação patrimonial.