A responsabilidade do parecerista jurídico no exercício da função prevista no art. 38, VI da Lei nº 8.666/1993

Isabela Montoro

13 set, 2021 ● 8 minutos

Uma análise do posicionamento da doutrina e do Supremo Tribunal Federal

O tema da responsabilização – ou não – do parecerista jurídico no exercício da função prevista no art. 38, VI da Lei nº 8.666/1993 é controverso: o posicionamento de renomados doutrinadores da área, bem como do Supremo Tribunal Federal (STF) é divergente, não havendo, desta forma, um entendimento consolidado acerca do tema, motivo pelo qual o escopo do presente artigo é trazer à tona tais posicionamentos, sem, porém, fazer uma análise conclusiva do seu mérito.

Nesse sentido, inicialmente, é importante mencionar que a Lei de Licitações, em seu art. 38, VI, estabelece que o procedimento licitatório, entre outros documentos, deverá estar acompanhado dos pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade. Já o parágrafo único do mesmo artigo prevê que a assessoria jurídica da Administração deverá examinar e aprovar, previamente, as minutas de editais de licitação, bem como a dos contratos, acordos, convênios ou ajustes.

Assim, como se pôde verificar, o parecer jurídico previsto no artigo supracitado possui caráter obrigatório, cujo objetivo é o de evitar vícios que possam causar a nulidade de todo um processo de contratação. Desta forma, é indiscutível que a ausência do parecer jurídico pode acarretar sanção àqueles que conduziram a licitação em razão do descumprimento de um dever legal (art. 38, VI e parágrafo único da Lei de Licitações).

Mas o que dizem a doutrina e a jurisprudência sobre a possibilidade de responsabilização de autores de parecer jurídico nos processos licitatórios?

Posicionamento da doutrina e do STF

Para uma parte da doutrina, o parecer exigido no art. 38 da Lei de Licitações é obrigatório, uma vez que, como já salientado antes, a ausência deste pode acarretar a nulidade do processo licitatório; já quanto ao seu acolhimento, no entanto, este não é obrigatório. Isso porque, segundo os doutrinadores, não se trata de um ato decisório, mas sim de uma opinião jurídica que tem como finalidade apenas orientar o Administrador no processo de tomada de determinada decisão.

Para elucidar a questão, segue entendimento de Hely Lopes Meirelles sobre o tema:

Pareceres administrativos são manifestações de órgãos técnicos sobre assuntos submetidos à sua consideração. O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já então, o que subsiste como ato administrativo, não é o parecer, mas sim o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinária, negocial ou punitiva.

O parecer, embora contenha um enunciado opinativo, pode ser de existência obrigatória no procedimento administrativo e dar ensejo à nulidade do ato final se não constar do processo respectivo, como ocorre, p. ex. nos casos em que a lei exige a prévia audiência de um órgão consultivo, antes da decisão terminativa da Administração. Nesta hipótese, a presença do parecer é necessária, embora seu conteúdo não seja vinculante para a Administração, salvo se a lei exigir o pronunciamento favorável do órgão consultado para a legitimidade do ato final, caso em que o parecer se torna impositivo para a administração.

Desta forma, para os defensores da linha de entendimento ora trazida, o parecer não consiste em ato decisório, e seu prolator, quando o faz, não se torna um gestor público, mas apenas aconselha o Administrador na sua tomada de decisão.

Diante de tal entendimento, a responsabilização do autor do parecer só é possível diante de comprovada má-fé, dolo, erro grosseiro ou inescusável em seu agir, tendo em vista os fatos elencados a seguir:

  1. O dever de administrar compete à autoridade administrativa e não à assessoria jurídica, tendo em vista o princípio da separação dos poderes;
  2. Inviolabilidade do advogado, com base no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, o qual só pode ser responsabilizado em casos de dolo ou culpa;
  3. A responsabilização do advogado público sem que se averigue a existência de erro grosseiro ou dolo faz com que este atue com medo de sofrer sanções, sem refletir na decisão mais correta com base no princípio da eficiência.

Já para a outra parte da doutrina, o parecer jurídico faz parte da própria decisão, sendo, pois, um ato administrativo decisório. Para elucidar a segunda linha de entendimento, seguem os dizeres de Marçal Justen Filho:

Ao examinar e aprovar atos da licitação, a assessoria jurídica assume responsabilidade pessoal e solidária pelo que foi praticado. Ou seja, a manifestação acerca da validade do edital e dos instrumentos de contratação associa o emitente do parecer ao autor dos atos. Há dever de ofício de manifestar-se pela invalidade, quando os atos contenham defeitos. Não é possível os integrantes da assessoria jurídica pretenderem escapar aos efeitos da responsabilização pessoal quando tiverem atuado defeituosamente no cumprimento de seus deveres: se havia defeito jurídico, tinham o dever de apontá-lo. A afirmativa se mantém inclusive em face de questões duvidosas ou controvertidas. Havendo discordância doutrinária ou jurisprudencial de certos temas, a assessoria jurídica tem o dever de consignar essas variações, para possibilitar às autoridades executivas pleno conhecimento dos riscos de determinadas decisões. Mas, se há duas teses jurídicas igualmente defensáveis, a opção por uma delas não pode acarretar punição.

Assim, a responsabilização da assessoria jurídica será solidária independentemente da comprovação de má-fé, dolo, culpa ou erro grosseiro, bastando a existência de irregularidades no processo licitatório.

Com relação ao entendimento jurisprudencial sobre o tema, principalmente quanto ao posicionamento adotado pelo STF, é importante destacar que, por muito tempo, a Suprema Corte adotou a primeira linha de entendimento aqui trazida, conforme se pode notar pela leitura do seguinte julgado (MS 24.073/DF, de 6/11/2002):

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS. TOMADA DE CONTAS: ADVOGADO. PROCURADOR: PARECER. C.F., art. 70, parágrafo único, art. 71, II, art. 133. Lei nº 8.906, de 1994, art. 2º, § 3º, art. 7º, art. 32, art. 34, IX.

I. - Advogado de empresa estatal que, chamado a opinar, oferece parecer sugerindo contratação direta, sem licitação, mediante interpretação da lei das licitações. Pretensão do Tribunal de Contas da União em responsabilizar o advogado solidariamente com o administrador que decidiu pela contratação direta: impossibilidade, dado que o parecer não é ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração consultiva, que visa a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa. Celso Antônio Bandeira de Mello, “Curso de Direito Administrativo”, Malheiros Ed., 13ª ed., p. 377.

II. - O advogado somente será civilmente responsável pelos danos causados a seus clientes ou a terceiros, se decorrentes de erro grave, inescusável, ou de ato ou omissão praticado com culpa em sentido largo. Publicação DJ 31-10-2003

Assim, para o STF, o autor de parecer jurídico nos processos licitatórios só poderia ser responsabilizado caso restasse comprovada má-fé, dolo, culpa, erro grave e inescusável, por se tratar de um ato meramente opinativo e não decisório.

Em contrapartida, num segundo momento, nos julgamentos dos MS 24.631/DF, de 9/8/2007 e MS 24.584/DF, de 9/8/2007, o STF mostrou a modificação de seu posicionamento anterior quando apresentou a diferença entre os pareceres jurídicos, conforme o que se destaca a seguir:

(i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo;

(ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer.

(iii) mas quando a lei estabelece a obrigação de “decidir à luz de parecer vinculante” (decider sur avis conforme), o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou não decidir.

Nesse sentido, segundo novo entendimento do STF, o parecer vinculativo enseja o compartilhamento de responsabilidade entre o administrador e o parecerista, pois esse último também é um administrador nesses casos, indicando assim a adoção, a partir de então, da segunda linha de entendimento trazida no artigo. Com relação aos demais pareceres, com caráter opinativo, o parecerista responde apenas caso reste comprovado erro grosseiro ou dolo.

Conclusão e recomendação aos pareceristas

Ainda que os posicionamentos aqui expostos sejam divergentes, independentemente da responsabilização ou não, é imprescindível que os procuradores, assessores e consultores jurídicos adotem em sua atuação toda a cautela e zelo quando da elaboração de suas peças, estando atentos às disposições legais e princípios relacionados à matéria em análise, bem como aos entendimentos mais recentes da doutrina e tribunais, para que não fundamentem seus pareceres de forma desarrazoada ou insuficiente.

Agindo todos dessa forma, não haverá que se falar em responsabilização de quaisquer das partes, uma vez que o deslinde do processo licitatório ocorrerá conforme o que a lei e os princípios preveem, alcançando-se a sua principal finalidade, que é a de selecionar a oferta mais vantajosa à Administração.