Acesso à saúde e as desigualdades regionais: um olhar para regulação

Ana Lígia Passos Meira

29 mar, 2022 ● 8 minutos

Artigo de opinião*

Entenda por que a configuração territorial do SUS é desigual por região e como é possível promover a distribuição de recursos para um acesso universal

Após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), referido em nossa Constituição Federal de 1988 (CF 88), o cidadão adquiriu o direito de acessar os serviços de saúde de maneira gratuita, sendo que no Art. 196 da CF 88 é citado que a “Saúde é direito de todos e dever do Estado”. A partir deste momento, aconteceu um movimento para organização e implementação de ações e serviços de saúde em todo o país. 

Podemos, aqui, citar dois dos Princípios do SUS: universalidade (todo cidadão tem direito à saúde e acesso a todos os serviços públicos de saúde) e integralidade (todas as pessoas devem ser atendidas desde as necessidades básicas, de forma integral). Por que citarmos esses dois princípios? Um dos motivos é para compreender o quão complexo é o “acesso à saúde” do cidadão, ou seja, o governo precisa garantir o acesso a todos os serviços de saúde e de maneira integral, em todo o ciclo vital do ser humano, do nascimento até a morte. Para além disso, é preciso ter ações preventivas antes de o ser humano adoecer e precisar de cuidados médicos.

Um grande desafio enfrentado por todos os gestores deste país é garantir o acesso diante de tantas disparidades e desigualdades regionais. Desigualdades essas muito decorrentes de nossas heranças históricas, além das conformações econômica e política do país. Ao longo dos anos, assistimos o crescimento dos conglomerados tecnológicos e industriais nos grandes centros metropolitanos, com a concentração das atividades urbanas e produtivas, ampliando a transição rural-urbana. Essa modernização fez com que aumentasse a concentração de recursos em determinados grupos e regiões.

Podemos verificar essa expressão e reprodução das desigualdades regionais do Brasil na configuração territorial do SUS, em que os grandes equipamentos de média e alta complexidades se mantiveram concentrados nas grandes capitais e metrópoles. Logo, os serviços mais complexos de saúde estão nesses espaços, aumentando a desigualdade de acesso a todos os serviços aos quais o cidadão tem direito constituído. Fato contrário a este pode ser observado em relação à expansão dos serviços básicos de saúde com a atenção primária, que se deu mais fortemente nas regiões mais pobres do país. Esse desenho regional aumentou as disparidades das configurações dos serviços de saúde, com concentração de leitos hospitalares avançados nos grandes centros, assim como dos complexos de saúde de exames e tratamentos, em contrapartida da ampliação dos serviços de atenção primária nas regiões mais pobres.

Isso contribuiu com a dificuldade do acesso a esses serviços mais complexos de saúde, localizados nos grandes centros por esses cidadãos moradores dos municípios menos providos de recursos e serviços. Para além dessa discussão de acesso, há um debate constante e, mais fortemente na última década, sobre a compreensão dos municípios na lógica da configuração de regiões de saúde, onde pode se tornar possível o acesso mais regular a todos os serviços regionais disponíveis de saúde. Pensado no sentido de promover a redução das desigualdades geográficas de acesso a ações e serviços de saúde, a partir da constituição de redes regionalizadas de atenção à saúde no SUS (não estamos, aqui, levantando a questão socioeconômica, onde essas desigualdades transcendem a essas dificuldades de acesso). Há dois pontos levantados no que se refere a esta estratégia: o fortalecimento das regiões de saúde e a importância do papel da regulação no acesso dos usuários aos serviços e equipamentos de saúde.

Os estados brasileiros são divididos em regiões de saúde para oferta e organização dos serviços e equipamentos. Para a pactuação e organização dessas ações nas regiões de saúde, foram criadas as Comissões de Intergestores Regional (CIR). Essa comissão foi constituída a partir da necessidade da organização das regiões de saúde, contribuindo para o fortalecimento das decisões e estruturação das redes de atenção à saúde. É um espaço que tem poder deliberativo, com participação dos secretários municipais de saúde, para discussões de saúde e elaboração de ações e estratégias que visam minimizar a fragmentação da atenção, aprimorando a organização das ofertas de vagas e serviços de saúde. 

Nesse processo, seria de fundamental importância que a regulação assumisse a racionalidade dos fluxos de pacientes nas regiões e para fora destas, participante das reuniões da CIR, buscando soluções harmônicas que aprimorem os desenhos regionais, bem como a distribuição dos serviços. Um desafio a ser enfrentado pelos gestores enquanto região de saúde é a implantação de um Complexo Regulador Regional, pois este poderia facilitar o processo de definição de referências regionais e distribuição dos recursos assistenciais de forma regionalizada, articulada e hierarquizada. Porém, ainda, se nota um papel incipiente ou até mesmo inexistente desta regulação regional, ficando a mesma muito restrita aos municípios e estados. 

A regulamentação da regulação em nosso país aconteceu em 2008, quando o Ministério da Saúde (MS) instituiu a Política Nacional de Regulação (PNR) e descreveu o conceito ampliado de regulação com os seus três eixos – sobre sistemas, da atenção e do acesso. Além de tratar da operacionalização das centrais de regulação, a PNR tem a função de fortalecer a regionalização, hierarquização e integração das ações e serviços; para tanto, a regulação pode ser vista como uma ação política de garantia de direitos sobre os interesses do Estado. Um setor de regulação organizado em uma entidade de saúde pode resultar em ações e processos de fortalecimento do planejamento, controle, monitoramento e avaliação, auditoria e vigilância da atenção e da assistência à saúde no âmbito do SUS, além da organização da atuação nos sistemas de saúde, produção direta das ações e serviços de saúde, como também a garantia do acesso a estes serviços pelos usuários.

A regulação busca promover o uso eficiente dos recursos e contribuir para a melhor qualidade da atenção ao tentar reduzir a fragmentação assistencial e a promoção da continuidade do cuidado. Ela tem papel importante na redução das desigualdades geográficas no acesso a serviços de saúde, permitindo maior equidade na alocação dos recursos e uma melhor organização do sistema de saúde como um todo.

Cabe à regulação a compreensão das necessidades de saúde da região/município e a definição de estratégias necessárias para diminuir as barreiras de acesso aos equipamentos e serviços de saúde. Além de enfrentar o desafio de levar os gestores municipais a elaboração conjunta da oferta e organização de serviços em saúde de forma mais cooperativa, operativa e solidária nas regiões de saúde. Para isso, é importante buscar superar a fragmentação e desigualdades em saúde, fortalecendo a base em uma atenção primária forte (com profissionais que exerçam a coordenação do cuidado integral) e desenhar uma rede regional de atenção à saúde estruturada e integrada de serviços.

Diante do enfrentamento à diminuição das desigualdades em saúde, a regulação deve se envolver no planejamento e na articulação estratégica para o emprego eficiente dos recursos, sendo colocada em negociações entre gestores em  torno de objetivos comuns, a partir da pactuação de metas, resolução mediada de conflitos e integração, por meio da articulação efetiva de bases de provisões de serviços, gerando arranjos multiorganizacionais, possibilitando espaços de governança em rede, corroborando com a capacidade de desenvolver estratégias e instrumento de promoção e sustentação de redes de atenção fortalecidas em torno de nosso sistema de saúde.

*Os artigos aqui divulgados são enviados pelos redatores voluntários da plataforma. Assim, o Radar IBEGESP não se responsabiliza por nenhuma opinião pessoal aqui emitida, sendo o conteúdo de inteira responsabilidade dos autores da publicação.

Ana Lígia Passos Meira, Enfermeira, Sanitarista, Mestre em Gestão e Economia da Saúde (UFPE), Doutora em Saúde Coletiva (FCMSCSP) e Pós-Doutoranda em Saúde Pública (FSP/USP). Administradora Hospitalar pela SBCD, preceptora em Saúde Coletiva pela FCMSCSP. Atualmente, estudando sobre sistemas, regionalização e regulação em saúde. Atua em pesquisas nacionais e internacionais de saúde, além de prestar consultoria em gestão e organização de serviços de saúde.