Burocracia excessiva no setor público: como virar esse jogo?

Deyvid Alan

18 jan, 2024 ● 9 minutos

*Artigo de opinião

Tecnologia colabora para serviços mais eficientes

Há tempos a burocracia assombra qualquer tipo de serviço no Brasil, especialmente na esfera pública. O termo virou sinônimo de ineficiência ou demora. O conceito nos remete, em geral, a algo incômodo. 

Com o avanço das tecnologias no setor privado, essa percepção se torna mais  evidente na seara pública. O difícil acesso a serviços simples e a complexidade para resolução de problemas incomodam o cidadão cada vez mais digital.  

A burocracia essencialmente não é algo ruim, como sugere o sociólogo alemão Max Weber. Trata-se de uma forma particular de organizar as atividades, de modo que não haja espaço para preconceitos ou paternalismo, onde as regras são claras e devem ser cumpridas por agentes de forma objetiva.

Pela perspectiva de Weber, o que é banalmente chamado de burocracia, na verdade representa um conjunto de “disfunções burocráticas” que impactam negativamente a vida de empresas e indivíduos.

A questão é: por que combater as disfunções burocráticas ou a burocracia excessiva no setor público é tão complicado? Como é possível revisar, modernizar e simplificar os aparatos, procedimentos e processos administrativos redundantes e desnecessários?

Burocracia excessiva: perda de tempo e dinheiro

A burocracia, antes tida como elemento organizador do serviço público, se perdeu no excesso, criando rotinas longas, tramitações intermináveis, vários níveis de responsabilidades e o pensamento de que o serviço público é moroso por natureza.

Hoje, ela representa um entrave ao andamento dos processos e, muitas vezes, atrapalha a entrega dos serviços ao contribuinte, frustrando os servidores e prejudicando os cidadãos. Isso se deve especialmente a alguns fatores:

  • Excesso de demanda junto ao órgão público
  • Sistemas obsoletos e metodologias anacrônicas
  • Servidores não capacitados para lidar com os processos
  • Processos realizados de forma física, manual e presencial

A última pesquisa realizada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostrou que, na América Latina, há uma grande perda de tempo, dinheiro e produtividade por conta da burocracia.

Nos países latino americanos, a média para um único procedimento é de 5,4 horas, mas algumas nações podem ter atendimentos que demoram mais de 11 horas.

Se fossem digitalizados e não presenciais, os trâmites em órgãos públicos demorariam 74% menos tempo e com um custo muito menor do que o modelo tradicional de atendimento.

O Brasil está entre os países que estão acima da média do tempo necessário para a realização do trâmite burocrático. A média no país é de 5,5 horas, superior à da Venezuela (5,3 horas). Por outro lado, o brasileiro precisa ir mais vezes ao órgão público para fazer um procedimento burocrático. 

Além de redução de custos, a pesquisa chegou à conclusão de que a digitalização de processos também diminuiria os índices de corrupção.

É possível combater o excesso de burocracia no Brasil?

Um estudo do CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina) aponta que, desde a Constituição de 1988, o Governo Federal vem descentralizando a responsabilidade e a capacidade fiscal para a esfera municipal.

Só no Brasil são 5.570 municípios distribuídos em unidades federativas que, em sua maioria, têm enfrentado sérias dificuldades financeiras e de entrega de qualidade nos serviços à população.

O estudo traz ainda que os governos municipais podem, através da utilização de tecnologia e parceria com empresas que oferecem soluções tecnológicas para órgãos governamentais, facilitar o dia a dia do cidadão e agilizar o trabalho de gestores e servidores públicos.

Outras pesquisas realizadas pelo CAF indicam que as soluções tecnológicas são positivas, com impactos comprovados mesmo em municípios de pequeno porte que possuem menor volume de processos.

Para o pesquisador da Universidade São Francisco e membro da Fundação Clara Assis (Funclar), de São Paulo, Décio Luiz Pinheiro Pradella, a informatização dos procedimentos do serviço público é uma premissa fundamental, mas que ainda está longe de atingir seu ápice.

Ele aponta que com soluções inteligentes e ferramentas de acessibilidade, gestores públicos podem desburocratizar processos nos municípios e proporcionar uma gestão democrática e mais simples.

Décio - que também atua como consultor em prefeituras para simplificação de procedimentos de licenciamento edilício e urbanístico - revela que em suas visitas tem verificado que há municípios que sequer possuem controle de processos informatizados.

O ponto positivo é que já se reconhece a necessidade de evolução para um cenário digital.

“Acredito que com a ajuda de canais de financiamento, assim como para contratos de consultorias, não haveria tanta dificuldade para a modernização de processos”, ressalta.

Sobre trocar métodos conservadores e processos obsoletos por ferramentas tecnológicas e mais eficientes, o pesquisador evidencia que a economia de recursos, decisões assertivas e melhoria na qualidade dos serviços não são os únicos resultados da transformação digital. Ele destaca também:

  • Inteligência de dados: fornece informação de boa qualidade permitindo que a prefeitura decida de forma mais eficiente a aplicação dos recursos e a resolução de problemas.
  • Eficiência no uso de recursos: reduz custos e prazos de execução dos serviços. Também minimiza o desperdício de tempo, o emprego excessivo de servidores em tarefas administrativas, os gastos com processamentos manuais e os controles falhos.
  • Transparência: facilita o acompanhamento pela população do andamento de processos administrativos e da execução orçamentária.
  • Valorização do funcionalismo público: diminui a atuação em tarefas desgastantes e repetitivas, direcionando o servidor para ações mais importantes e estratégicas.

Pessoas, processos e tecnologia transformando governos

O empresário do setor de tecnologia e ex-presidente do Comitê de Desburocratização do Sinduscon Paraná - Oeste (Sindicato da Indústria da Construção Civil), Marco Antonio Zanatta, diz que é essencial oferecer serviços públicos tão eficientes quanto outros serviços digitais. 

"Ao analisar pelo viés da cidadania, colocando como uma prioridade gestores que zelam pela dignidade e qualidade no atendimento, abre-se uma oportunidade de atender os verdadeiros anseios do cidadão sem que a racionalidade ou as normas sejam desrespeitadas”, destaca.

Marco lembra que a digitalização de serviços municipais também auxilia as prefeituras economizarem, porque reduz o consumo de papel e inúmeros insumos. Além disso, coloca no automático atividades administrativas e repetitivas que podem ser facilmente assumidas pela tecnologia.

A digitalização, para ele, é um caminho sem volta, mas não se trata apenas de migrar serviços manuais e analógicos do papel para o digital, mas de proporcionar algo melhor, mais prático e ágil.

"Além de comodidade e agilidade para o cidadão, essa transformação também agrega valor à gestão. Uma cidade digital, inteligente e eficiente é construída por decisões focadas em pessoas, processos e tecnologia", pontua.

Os marcos da transformação digital na maior cidade da América Latina

São Paulo, a maior cidade da América Latina, apostou na modernização para se tornar referência entre as cidades mais eficientes do país.

De acordo com o coordenador do Sistema de Infraestrutura Tecnológica, Hélio Freitas Filho, ainda em 1992 ocorreu o primeiro salto da rede municipal de informática, que teve como projeto piloto um sistema para unir administração geral e subprefeituras.

Cinco anos depois foi possível interligar as primeiras quatro subprefeituras, fornecendo acesso aos munícipes de forma online a partir de 2002. 

Outro grande marco dessa transformação aconteceu em 2012, com a implantação do sistema de licenciamento de construção eletrônica. Este foi o primeiro sistema que “conversava” com vários bancos de dados e outros sistemas das subprefeituras.

Em 2015, o sistema eletrônico de comunicação fornecido pelo Governo Federal foi o destaque da época. A atualização mais recente se deu em 2020 com a implantação da Aprova que se tornou a porta de entrada dos processos eletrônicos da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento.

Segundo Hélio, além de digitalizar os processos e automatizar várias etapas do atendimento, a tecnologia integrou os sistemas já utilizados e padronizou as análises dos processos nas cidades da Grande São Paulo.

“O sistema digital permitiu fazer padronização para que todos os processos tenham a mesma leitura da lei e padrão de análise, o que dá segurança ao munícipe. A ferramenta possibilita o gerenciamento dos dados por parte dos servidores operacionais, que conseguem fazer melhor planejamento internamente”, detalha.

Desde o salto tecnológico de 2020, o processo de emissão de alvarás de construção foi otimizado, reduzindo em 80% o tempo necessário para obter a documentação necessária para o início da obra.

Neste período foram aprovadas 131.165 moradias, número superior a todos os anos desde 2013, quando o dado passou a ser contabilizado. Destaque para as unidades de Habitação de Interesse Social que somaram 97.373 e representaram 74% de todas as moradias licenciadas.

O licenciamento de moradias populares em 2021 foi tão expressivo que representou um aumento de 63% em relação a 2020, ano que, até então, registrava o recorde histórico de 80 mil unidades aprovadas.

A marca vai ao encontro do Programa de Metas 2021-2024 do Município que estabelece em sua meta o licenciamento de 300 mil habitações populares até o fim de 2024.

Atualmente, São Paulo conta com 32 subprefeituras integradas, 900 servidores trabalhando online e simultaneamente na análise de mais de dois mil processos que são submetidos à Secretaria diariamente. 

A tecnologia é uma aliada importante nesse processo, mas, para Zanatta, "somente com o engajamento das pessoas - o capital mais valioso dessa jornada - será possível reduzir a entropia dos processos para o gestor público desatar outros nós, muito mais importantes para o governo e o cidadão." 


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