Como quebrar as barreiras de comunicação no setor público?

13 set, 2021 ● 13 minutos

Confira a entrevista de Ana Clara Ferrari e saiba como um plano de comunicação pode impactar gestores e cidadãos

A equipe de comunicação de qualquer órgão público possui em mãos um grande desafio: atuar com eficiência tanto para seu público interno quanto para seu público externo. Para além disso, quem trabalha na área muitas vezes se vê diante da tarefa de conscientizar outros profissionais sobre a importância de um correto planejamento na hora de elaborar planos comunicativos e políticas públicas.

A complexidade que envolve a atuação no setor é capaz de expor uma problemática recorrente na Gestão Pública: como delimitar o que é papel da equipe de comunicação e dos demandantes de alguma campanha comunicativa? Como tornar a comunicação nos órgãos públicos eficiente e contribuir para uma cultura mais transparente?

Confira a entrevista de Ana Clara Ferrari, coordenadora de comunicação da Secretaria Municipal de Inovação e Tecnologia de São Paulo, e saiba mais sobre o assunto!

Pergunta: Como o planejamento comunicativo de um órgão público pode impactar o cidadão? E os servidores que atuam neste órgão?

Resposta:

Via de regra, a resposta a essa pergunta geralmente é intuitiva: “a comunicação impacta o cidadão porque ele precisa ficar sabendo das políticas públicas e decisões que afetam o dia a dia dele”. Mas, na verdade, a relação é muito mais complexa e os gestores públicos precisam começar a entender isso.

Atualmente, a comunicação na gestão pública é entendida de forma funcionalista – ou seja, é vista apenas como um conjunto de ferramentas (cartaz, banner, site, redes sociais, etc) e estratégias pontuais a serem utilizadas para fazer a informação sair de um ponto e chegar ao outro. A partir dessa concepção, a comunicação é apartada, por exemplo, de todo ciclo de elaboração da política pública. O que eu quero dizer: em nenhuma etapa do processo (formação de agenda, elaboração de alternativas, formulação e implementação) a comunicação é vista como parte integrante e estratégica da política pública. Portanto, apenas quando a política pública está totalmente formulada, pronta e acabada pelos “técnicos”, os gestores “lembram” que precisam comunicar isso de alguma forma para o público. É quando a comunicação entra no processo, mas de forma totalmente ferramental. O curioso, e não menos importante, é que isso tem um impacto absurdo na etapa seguinte: a avaliação da política pública. Por exemplo, quando a avaliação é positiva, o mérito é de toda a equipe gestora, dos parceiros envolvidos, etc. Quando a avaliação é negativa, abre-se o guarda-chuva do “problema de comunicação” que pode esconder problemas profundos de gestão.

Ou seja, subestima-se a importância da comunicação ao longo de todo ciclo da política pública, encarando-a de forma funcionalista, além de baixo investimento em pessoas, salários, cargos, carreira. No entanto, superestima-se seu papel, quando se trata de diagnosticar obstáculos de implementação e/ou de fazer uma avaliação rigorosa da política pública.

Nesse cenário, não há plano de comunicação, por mais efetivo que seja, que funcione. Muitos gestores, por exemplo, nas etapas finais de implementação e avaliação da política buscam resolver entraves de gestão com ferramentas e/ou estratégias de comunicação – impedindo uma visão qualificada do problema. E é o que temos mais visto e ouvido nos mais diversos níveis da administração pública. Enquanto a comunicação estiver apartada de todo o processo de elaboração da política pública, vamos continuar focando energia apenas no “problema de comunicação” quando, na verdade, precisamos transformar todo o processo.

Ao fazer isso, gestores vão começar a se dar conta de que inserir a comunicação em todo o ciclo da política vai transformar justamente a própria elaboração da política pública. Isso se dá porque o comunicador faz perguntas que o gestor não faz, não por incompetência ou desatenção do gestor, mas pela própria função social da comunicação. Outro impacto que ela traz, se inserida como parte integrante da política, é a possibilidade de aumentar a participação social efetiva da população. Afinal, é inconcebível para um comunicador, por exemplo, traçar qualquer tipo de estratégia sem conhecer a fundo o público-alvo, ou seja, traçar uma política inteira sem sair do gabinete. Por fim, no atual estágio da era digital, a comunicação é indissociável dos fatores de acesso à tecnologia e processos inovadores – trazendo novas possibilidades e alcance para a criação de soluções inteligentes, por exemplo.

Em suma, inserir a comunicação no ciclo de política pública vai transformar a própria política, ou seja, podemos começar a criar condições para que o Estado consiga responder aos anseios dos cidadãos; para que superemos esse descompasso desafiador para gestores e comunicadores da gestão pública.

Pergunta: O setor público tem a tarefa de implantar planos de comunicação que sejam eficazes e transparentes tanto para seu público interno quanto externo. Quais tipos de abordagem uma equipe de comunicação deve ter com estes dois públicos distintos?

Resposta:

Atualmente, o desafio é menos de acesso à informação e mais de atenção qualificada do público alvo. Isso faz toda a diferença na estratégia que pretendemos abordar – tanto o público externo quanto interno.

No caso do público interno, por exemplo, na Prefeitura de São Paulo, nosso principal (e praticamente único) canal de comunicação interna é o e-mail institucional. Mas imagine que são vinte e tantas secretarias, cada uma com seus departamentos, disparando e-mails para todos os servidores. Não há quem leia tudo, ainda mais de outros setores. Ou seja, não há fluxo que faça todos os servidores e servidoras saberem tudo que está acontecendo. Mas, voltando à reflexão da outra pergunta, isso é um problema de comunicação ou a forma como a administração pública se organiza (em caixinhas institucionais) não cria condições para que as pessoas entendam as políticas de forma intersetorial, portanto qualifiquem a atenção para elas (mesmo que não seja de interesse direto de seu departamento)?

Para elaborar um bom plano de comunicação interna, é preciso entender e dominar três elementos fundamentais

Isso impede ter soluções “inovadoras”, mas que não dialogam, ou pior, sequer chegam ao público. Por exemplo, uma animação em vídeo super produzida, publicada no youtube, voltada para líderes de atendimento. Se os servidores “da ponta” não têm acesso ao youtube, como eles vão ver? Posso enviar por e-mail, mas a caixa não suporta grandes arquivos. Posso usar um wetransfer, mas as pessoas que eu quero atingir terão habilidade, tempo e disposição para fazer todo o processo? Depende da cultura e da governança. O primeiro ponto é estratégico para quem está elaborando um bom plano de comunicação, pois é fundamental entender o que é um problema de comunicação e o que é um problema de gestão que está querendo usar a comunicação para ser resolvido. E adianto: não vai ser.  

Em relação ao público externo, um bom plano de comunicação, em primeiro lugar, deve nascer, crescer e estar integrado a todo ciclo de elaboração da política pública – e não ser apenas “um post no facebook, um release e uma matéria no portal” no final do processo, quando ela já está pronta e acabada. Isso vai pressupor, por exemplo, maior participação da sociedade na construção dessa política; pensar soluções inovadoras no âmbito da tecnologia e do acesso à informação; traçar estratégias para públicos distintos; a depender do caráter e da abrangência da política pública. Essas são algumas medidas para que consigamos superar esse descompasso desafiador entre uma sociedade hiperconectada, pautada por respostas rápidas e individualistas e um Estado que – mesmo com tantas limitações – ainda é o espaço da elaboração coletiva e principal organizador da teia da estrutura social, econômica e política.

Pergunta: A inserção de diferentes veículos de comunicação no cotidiano trabalhista como, por exemplo o whatsapp, é positiva ou negativa? Como consolidar dados de forma segura com a atual pluralidade dos meios comunicativos?

Resposta:

São duas necessidades distintas. Uma é a necessidade de comunicação entre servidores, por exemplo, para resolver problemas do cotidiano. Em diversos casos, isso pode ser necessário, principalmente em estruturas de atendimento na ponta e equipes grandes. Mas o WhatsApp enquanto ferramenta de comunicação oficial e de tomadas de decisão, por exemplo, não é a melhor solução – justamente porque não permite um fluxo adequado de informações, além do caráter informal e pessoal da plataforma, que pode ocasionar ruídos, interpretações, etc.

Consolidar dados sempre foi um desafio do poder público, mesmo quando não havia tanta pluralidade nos meios de comunicação. De novo a pergunta: se um órgão não consegue consolidar dados com segurança é um problema de comunicação ou de gestão? Precisamos colocar uma lupa sobre essas questões para entender a origem e utilizar as ferramentas adequadas para resolvê-las.

Essa “confusão” é muito comum de acontecer, porque a tecnologia da informação vem ganhando protagonismo dentro dos gabinetes de gestão, portanto aparentemente tudo parece ser problema de comunicação. Mas esse fenômeno pode criar uma “sombra”, por exemplo, em problemas de gestão que podem não ser “enxergados” pelos gestores. E aí, sim, mais do que uma questão de segurança, podemos ter problemas na própria gestão da política.

Pergunta: De que formas um plano de comunicação pode beneficiar a gestão de pessoas em um órgão público?

Resposta:

O principal elemento agregador das pessoas é a criação de conexões – sejam elas de ordem pessoal, profissional, familiar. Um bom plano de comunicação que permita a criação de espaços e instâncias para realizar essas conexões é a melhor estratégia para potencializar a gestão de pessoas em qualquer ambiente. 

Sempre apoiado no tripé – gestão, cultura e governança de tecnologia –, um bom plano de comunicação pode ser aliado estratégico no combate ao assédio, no melhor relacionamento interpessoal, no desempenho profissional e, principalmente, no incentivo à igualdade de gênero e diversidade. Um plano de comunicação, por exemplo, que garante textos descritivos em todas as imagens que utiliza em seus canais pode gerar um sentimento de pertencimento à equipe de pessoas com deficiência – potencializando o seu processo de inclusão no corpo de servidores; ou um plano de comunicação que conhece a realidade socioeconômica do seu público talvez não foque tanto em vídeos pesados para rodar em redes sociais ou WhatsApp (que possa exigir um plano de dados robusto). Mas, de novo, nenhum plano de comunicação será eficiente se não estiver intimamente relacionado às instâncias de tomadas de decisão e integrado às estratégias de gestão.

Pergunta: Quais dicas você daria para um gestor público que deseja melhorar seu padrão de comunicação?

Resposta:

1) Compreender e trabalhar com uma perspectiva global de comunicação;

2) Tratar a comunicação como parte integrante de todo ciclo de políticas públicas – não apenas de forma instrumental -- como um conjunto de ferramentas (rede social, release, site, vídeo, etc)

3) Isso significa investimento de comunicação em estrutura, pessoas, cargos e, consequentemente, em mudanças até na própria perspectiva da política pública.

4) Abrir-se para linguagem simples. Como a comunicação não está integrada ao ciclo da política pública, o documento público já “nasce” incompreensível para a maior parte das pessoas (legislações, decretos, normativas, etc). E há resistência dos gestores em mudar termos e adequar linguagens. Para um primeiro momento,  precisamos entrar na fase de “tradução” do documento público, na refacção – o que já é um enorme esforço – e garantir o direito básico do cidadão de ter acesso à informação clara e objetiva. Para um segundo momento, capacitar e disseminar a cultura da linguagem simples no poder público.

5) Quando for articular estratégias de comunicação, fazer um bom diagnóstico sobre o tripé da comunicação no poder público: gestão (estrutura, tomadas de decisão, fluxo, procedimentos, processos, etc); cultura (do servidor ou do público-alvo); governança de tecnologia (infraestrutura, acesso, maturidade, etc).

6) Nas fases de implementação e avaliação da política pública, fazer um esforço consciente ao que é de fato um “problema de comunicação” e o que parece, mas, na verdade, pode ser “problema de gestão”. Isso, inclusive, pode melhorar qualitativamente as análises qualitativas sobre uma determinada política e abrir espaço para inovação.

7) Estar atento às possíveis deficiências e obstáculos de gestão atrás do guarda-chuva da complexidade da comunicação, apenas vista com essa amplitude quando precisa acolher limitações estruturais diluídas em diversas fases da política pública. 

Por fim, para avançarmos qualitativamente, é importante que os gestores públicos compreendam a complexidade da comunicação e quebrem essa visão funcionalista tão recorrente nas instituições. Ao fazer isso, o leque de potencialidades na qualidade do diálogo (interno e com a sociedade) e na exequibilidade da política pública aumenta significativamente, ampliando o espectro de atuação do gestor e sua equipe, garantindo um ciclo de planejamento, monitoramento e avaliação mais adequado à contemporaneidade, uma atualização lenta e gradual dos processos internos e administrativos tornando processos mais ágeis, eficientes e transparentes e fortalecendo o poder público e o Estado, criando condições e ambientes favoráveis para se adequarem às transformações do século 21.

SOBRE A ENTREVISTADA

Ana Clara Ferrari é coordenadora de comunicação da Secretaria Municipal de Inovação e Tecnologia de São Paulo. Possui ampla experiência em estratégias de comunicação multimídia, assessoria digital e hardnews.