Desenvolvimento Local: entre a gentrificação e a solidariedade

Rodrigo Sanches

30 ago, 2022 ● 6 minutos

Dentro da dimensão dialética criada entre centro e periferia, existe um amplo debate sobre as diversas definições do nível local. Porém uma definição comum entre os pesquisadores é que o nível local é um território que possui um determinado conjunto de relações específicas e que possui suas próprias características populacionais e econômicas.

Martins, Vaz e Caldas (2010) elaboram definições básicas sobre o que significa definir o “local” na noção de desenvolvimento. Segundo os autores: “O local não foi entendido a partir de um recorte administrativo, portanto nem sempre se sobrepôs ao municipal. Em alguns casos era mais amplo e abarcava uma região inteira, em outros abarcava apenas determinados bairros de um conjunto de municípios”.

São a lógica capitalista tradicional em escala localizada e a lógica contra-hegemônica as duas frentes teóricas mais utilizadas para interpretar as diferentes práticas e projetos para o desenvolvimento local. A primeira frente se refere à uma prática de promoção do desenvolvimento na localidade a partir da reprodução das características do desenvolvimento capitalista, ou seja, com um viés de:

  • reprodução de desigualdades econômica e política em escala localizada;
  • relações fragilizadas entre atores locais, baseadas na concorrência, ganância e mais valia;
  • exploração e utilização descontrolada dos recursos humanos e naturais.

Já a lógica contra-hegemônica se refere à uma prática de promoção do desenvolvimento na região baseada em princípios da fraternidade, ação coletiva, solidariedade, respeito à natureza, às pessoas que moram na região, à cultura viva do local e a sua história de formação (MARTINS; VAZ; CALDAS, 2010).

É muito comum encontrarmos nas cidades brasileiras iniciativas, tanto públicas quanto privadas, para promoção do desenvolvimento local a partir da lógica capitalista tradicional, reforçando as desigualdades e submetendo o território a um núcleo econômico externo - ao centro. Com a escolha do Brasil para sediar uma grande quantidade de megaeventos internacionais em um curto espaço de tempo - Copa do mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016, por exemplo - essa lógica se intensifica e uma série de impactos sociais e econômicos são vistos em localidades antes desvalorizadas, e que com o grande aporte de capital investido para receberem esses eventos mudam completamente sua dinâmica anterior. Processos semelhantes ocorreram no bairro de Itaquera, na zona leste de São Paulo, e na região onde foi construído o Parque Olímpico, na Barra da Tijuca - Rio de Janeiro.

Dois são os principais impactos que ocorrem após a implementação de um projeto de desenvolvimento desse porte: O primeiro é a supervalorização do mercado imobiliário, onde os proprietários de imóveis aumentam o preço dos aluguéis, dessa forma, a grande maioria da população que não tem casa própria é forçada indiretamente a sair da região que construiu com o próprio trabalho durante anos. O segundo efeito é o aumento do preço dos serviços e dos produtos existentes na localidade, ou seja, a incontrolável ação da especulação imobiliária e financeira na vida cotidiana das pessoas carentes e que não tem poder aquisitivo suficiente para suportar um aumento tão drástico no novo custo de vida da região.

Esse processo é conhecido por estudiosos do Urbanismo como Gentrificação (WACQUANT, 2010). Ou seja, quando o custo de vida de uma região carente se eleva por conta de um processo repentino de urbanização, onde o Estado o realiza por conta de pressão de grupos econômicos interessados em valorizar o local para atrair investimentos e aumentar suas taxas de lucro, e as pessoas residentes são forçadas a sair por forças de mercado.

Com o processo de gentrificação e os impactos tão significativos na vida dos moradores do bairro, é nítido que a escolha política em promover o desenvolvimento local a partir de uma concepção meramente mercadológica e de supervalorização financeira do local, ao invés de promover o desenvolvimento sustentável, traz um custo social e político extremamente elevado. Esse processo intensifica a relação entre centro e periferia, aumentando as desigualdades e, por consequência, cria ainda mais situações de moradias irregulares em novas regiões ocupadas pelos moradores afetados, regiões essas muitas vezes sem qualquer tipo de infraestrutura urbana para receber essas populações. Esse projeto de desenvolvimento é falido e, acima de tudo, prejudicial para os mais vulneráveis, trazendo benefícios apenas para o mercado imobiliário, proprietários de imóveis e para grandes empresários dessas regiões. Segundo Nardi (2012):

Urbanização pela urbanização não é melhoria, é privação. “Vamos urbanizar a comunidade'' é uma declaração tácita de remoção quando não acompanhada de políticas públicas que impeçam ou amenizem a especulação imobiliária ali. Na maior parte das vezes, a urbanização é ação externa impulsionada por um grupo privilegiado que quer amenizar a desvalorização de seus imóveis em decorrência da proximidade de comunidades economicamente pobres. No longo prazo, pode originar uma troca completa da população do bairro 'urbanizado', que deixa de ser oposição para ser complementaridade. Exemplos não faltam: Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Paris, Londres, Nova Iorque e por aí vai.

Qualquer processo de promoção do desenvolvimento local deve respeitar a comunidade residente nesta localidade, o interesse do bem público, a ação coletiva, os movimentos sociais, a relação entre todos os diversos atores residentes e, principalmente, o bem-estar de toda a população local; e não somente o interesse de um grupo de pessoas que estão dispostas a tudo para aumentar seus lucros e mudar totalmente a região para um local “desenvolvido” no aspecto imobiliário e urbanístico.

Dessa forma, deve-se considerar que, como afirmam Martins, Vaz e Caldas (2010): “Para dar conta dessas questões, tem-se o desafio de encarar o local como campo de possibilidades e de experimentações. Assim, a avaliação das experiências deve contemplar certa condescendência com resultados econômicos de curto prazo e buscar olhar para os processos de mais longa duração”.

Os diversos processos de gentrificação que ocorreram nas cidades brasileiras vítimas desse movimento de desenvolvimento segregador mostra a falta de capacidade do poder público e da iniciativa privada em desenvolver as localidades, a periferia do sistema capitalista. Esses projetos foram impulsionados a partir da vinda dos grandes eventos para o Brasil e foram implementados de maneira top-down e não contou de maneira alguma com a participação da população local em sua formulação, ou seja, da maior interessada.

Referência Bibliográfica

MARTINS, R. D; VAZ, J. C; CALDAS, E. L. A Gestão do Desenvolvimento Local no Brasil: (des)articulação de atores, instrumentos e territórios. Revista de Administração Pública. São Paulo, v. 44, n. 3, 2010, p. 559 – 590.

WACQUANT, L. Ressituando a Gentrificação: a classe popular, a ciência e o Estado na pesquisa urbana recente. Caderno CRH, Salvador, v. 23, n. 58, 2010, p. 51 - 58.

NARDI, D. Retire-se, por favor. Portal PET direito. setembro de 2012. Reflexões. Disponível em: www.petdirunb.wordpress.com/2012/09/06/retire-se-por-favor/. Acesso em: 17 ago 2022.