As condutas dos gestores públicos para se manter no poder e suas divergências com os princípios que regem a atuação da Administração Pública
Administrar não é uma tarefa fácil. Há muitos problemas para serem resolvidos, diversas regras a serem cumpridas, contas a serem prestadas, responsabilidades assumidas e a necessidade de desenvolver bons diálogos e atuar com ética, para que o poder conferido ao gestor não seja utilizado de forma a apenas lhe assegurar vantagens em detrimento do interesse público.
Os órgãos de controle são igualmente importantes nessa seara, porquanto, possuem canais para representações e denúncias cuja finalidade é justamente possibilitar que eventuais irregularidades praticadas pelos gestores ou mesmo por sua equipe técnica cheguem ao conhecimento das Cortes de Contas.
Não é à toa, portanto, que a Constituição Federal de 1988 outorgou um rol de possibilidades e autonomia à atuação dos órgãos de controle externo, bem como dispôs em seu art. 37, caput, que todos os entes da Administração Pública devem obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; além de discorrer sobre regras para o ingresso no serviço público via concurso, os subsídios de vereadores, prefeitos, governadores e outros e a forma de acesso a esses cargos.
As regras existem e seriam muito relevantes se cumpridas em sua integralidade. Mas, não é o que se tem visto ao longo da história da política brasileira, em que é bem comum a atuação pessoal dos gestores, sem a devida observância da impessoalidade. As razões para tanto são variadas, cabendo este artigo apenas a discussão sobre alguns dos mecanismos usados por alguns gestores para se manterem – ou manter seus aliados – no poder.
Como é cediço, o gestor público atua tanto de forma vinculada como de forma discricionária – que costuma ser associada à sua liberdade de tomada de decisão –, o que não afasta, por certo, o dever de atuar conforme a legalidade, visando o interesse público e o cumprimento dos princípios norteadores da atuação da Administração.
No entanto, é comum verificar falas de gestores que tratam da coisa pública como se deles fosse, a título de exemplo tem-se: “a compra que eu fiz para os hospitais”, “as escolas que minha gestão reformou”, “o aumento de salário que o meu governo concedeu aos servidores públicos”. Observe-se que a tendência é discutir as obras e compras feitas que trouxeram bem à coletividade como se essas tivessem sido fruto dos recursos e da empatia dos gestores, e não da necessidade de que essas condutas fossem adotadas diante da realidade e mesmo da previsão legal para essas ações.
A pandemia da COVID-19 escancarou essa problemática, uma vez que a escassez de mercadorias nas prateleiras, a falta de insumos para a fabricação de medicamentos e materiais apropriados para franquear hospitais, unidades de pronto atendimento e outras redes de saúde foi o estopim para que alguns gestores, já preocupados com as eleições municipais que ocorreram em 2020, fizessem uso desse cenário para se autopromoverem.
Embora esses gestores tivessem a responsabilidade de traçar e definir políticas de enfrentamento ao problema pandêmico, sob pena de serem responsabilizados nos termos do art. 28 da Lei Federal nº 13.655, de 2018 (“Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”), esse dever não poderia estar atrelado a uma tentativa de edificar a imagem do gestor diante do seu palanque eleitoral. O cumprimento de seus devedores para com a população não é uma mera liberalidade, logo, não lhe cabe qualquer “bônus” por fazer o que se comprometeu quando assumiu o poder.
Nesse contexto, os serviços e compras contratados para o combate da pandemia não eram parte de um rol de “bondades” dos gestores e sim dos encargos e obrigações típicos dos cargos que exercem. Mas, ao colocar essas ações na base de pautas populistas como “o combate ao mal” e “fazer o bem para o povo”, esses gestores incorrem em condutas que não acompanham a moralidade administrativa.
O mesmo se poder apontar em relação à eficiência, que, nas palavras do professor Floriano de Azevedo Marques Neto1, é uma “(...) sinalização clara do dever (agora constitucionalizado) de que a atuação e organização administrativas se voltem a eficazmente satisfazer as finalidades públicas”. Ora, o gestor que aproveita do poder que detém para se colocar em um status “heroico” está mesmo comprometido com a eficiência da Administração Pública ou com a eficiência de seu próprio favorecimento?
O gestor, é importante destacar, é o indivíduo que detém deveres para gerir de forma adequada os recursos públicos, cabendo-lhe adotar condutas efetivas para fazer valer a legislação vigente e a Constituição Federal; podendo fazer uso de sua discricionariedade em casos específicos não dispostos em lei. Contudo, isso não lhe garante uma aba de liberdade em que possa ignorar o interesse público para assegurar seu direito individual, suas pretensões e interesses em se manter no poder.
Outro ponto interesse nessa tentativa de favorecer a própria imagem é o uso do poder do cargo para depreciar a imagem de adversários políticos numa correlação do bem versus o mal, mais que isso, é o uso da máquina pública para oprimir e tornar inviável que candidatos de oposição consigam estabelecer suas percepções políticas naquele “mercado” que já possui um detentor.
Os acordos com empresas em certames licitatórios também são bastante comuns. Em síntese, nos bastidores os gestores fazem acordos com empresas específicas para que estas vençam a licitação e, posteriormente, prestem auxílio financeiro para que ocorra a perpetuação no poder daquele indivíduo ou grupo ao qual faz parte.
Não se trata aqui de fazer apontamentos a um ou outro partido ou mesmo a orientações políticas. O que se analisa são algumas ações praticadas por alguns gestores – e que são de conhecimento público – cuja finalidade não é o atingimento do interesse público e sim o interesse do próprio gestor.
Essa crítica está em consonância com as lições da Professora Irene Nohara2, para quem as práticas clientelistas e personalistas, bem como a troca de favores como instrumento para permanência no poder e manutenção de privilégios devem ser combatidas, de modo que a eficiência disposta na Constituição não fique apenas no plano das ideias, mas adentre no plano prático.
Assim sendo, cabe aos gestores públicos defender o patrimônio público, aplicar os recursos públicos de forma adequada – comprometendo-se com os princípios norteadores da Administração Pública –, cumprir a finalidade de sua atuação administrativa e buscar atingir ao interesse público. Afinal, os cargos que ocupam não podem servir de ponte para que enriqueçam ou se mantenham no poder e sim para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
1 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. Fórum de Contratação e Gestão Pública, v. 9, n. 100, 2010.
2 NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia: Impacto da Eficiência na Configuração do Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012.
Autor:
Ana Cláudia Silva Araújo SantosTags:
Controle, Governo, Matérias