Histórico de Institucionalização das Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil

Rodrigo Sanches

03 maio, 2022 ● 8 minutos

Artigo de opinião*

Saiba a importância da institucionalização de políticas públicas afirmativas para a redução das desigualdades

Após cerca de um século de lutas, percebe-se que os anos 1990 e 2000 concentraram diversos avanços para as questões raciais no Brasil, possibilitados pelo acúmulo de enfrentamentos e aprendizados das décadas anteriores. Essas conquistas referem-se, principalmente, ao acesso às oportunidades de educação e promoção de direitos, como por exemplo, a Lei nº 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos programas pedagógicos das escolas públicas de ensino básico no Brasil, e que regulamenta o artigo 242, parágrafo primeiro da Constituição Federal de 1988; e a Lei nº 7.716/1989 – a Lei Caó, citada anteriormente – que regulamenta o artigo 5º, inciso 42, da CF 88 que criminaliza o racismo no Brasil e substitui automaticamente a antiga Lei Afonso Arinos1 (RIBEIRO, 2014).

A partir de 2003, a política afirmativa sofre um intenso processo de institucionalização, em escala federal, fato marcado pela criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR – que apesar de ser, na época, uma secretaria vinculada à Casa Civil, tinha status institucional de ministério. A criação da SEPPIR organiza todas as políticas afirmativas formuladas e implementadas até então, criando um sistema de políticas que se complementava e dialogava tanto com os outros ministérios setoriais – como saúde, trabalho e educação – como de forma federativa com outros entes da República, com os estados e municípios (RIBEIRO, 2014).

Esse momento chega no seu ápice com a realização, em 2005, 2009, 2013 e 2018, respectivamente, das quatro Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial – CONAPIR, a aprovação do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR – em 2009; e a instituição, em 2010, do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial – SINAPIR – através da regulamentação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Congresso Nacional (RIBEIRO, 2014).

Estados e municípios criaram, nesse período, estruturas institucionais que tinham como objetivo principal fornecer uma solução para a questão racial em suas regiões. Grandes capitais brasileiras como Belo Horizonte e São Paulo, além dos governos estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro, foram pioneiros nesse processo. A estruturação e, principalmente, a institucionalização das ações do poder público em suas diferentes instâncias administrativas e federativas foi a principal forma pela qual se legitimou as políticas de igualdade racial como políticas de Estado. Segundo Matilde Ribeiro (2014, p. 209):

Mesmo em contextos adversos, as experiências se deram, num primeiro momento, por meio da criação nos governos locais de órgãos consultivos – de elaboração de indicativos para as políticas públicas. Posteriormente, foram criados os órgãos executivos em governos locais e no federal – as coordenadorias, assessorias e similares – vinculados às secretarias, e órgãos finalísticos de diferentes naturezas e as secretarias e ministérios específicos, com dotação financeira e estrutura própria.

O estado de São Paulo foi pioneiro nessa linha de atuação. Muito antes desse processo federal de institucionalização, já no ano de 1984, foi criado o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra. Essa iniciativa vanguardista do governo paulista apresentou, porém, dificuldades nas negociações entre os representantes do movimento negro e do governo do estado; fato natural tendo em vista a inédita experiência de um espaço institucional de diálogo entre o movimento social e o Estado brasileiro (SANTOS, 2006).

É inegável a importância que o Conselho da Comunidade Negra teve dentro do processo de institucionalização das políticas de igualdade racial em SP. A criação do Conselho no governo estadual influenciou uma atitude semelhante na capital paulista. Em 20 de novembro do ano de 1987, a partir do Decreto Municipal nº 24.986, o então Prefeito Jânio Quadros criou o Conselho Municipal do Negro. (LAIA, 2012)

O pioneirismo dos governos estadual e municipal na criação de uma unidade administrativa responsável unicamente pela gestão da política de igualdade racial foi um marco histórico para a questão racial em São Paulo e adiantou uma demanda que viria a se tornar obrigatória nos municípios brasileiros que quisessem aderir ao sistema de políticas afirmativas brasileiro. A partir da formalização do SINAPIR, em 2010, quando muitos estados e municípios ainda estavam se adaptando à nova realidade institucional, São Paulo já acumulava uma expertise histórica no assunto e carregava uma memória institucional  considerável. Outras cidades brasileiras também apresentam ações institucionais vanguardistas nesse assunto, como é o caso de Salvador e Recife.

Durante a primeira década do século XXI, a política afirmativa assumiu um patamar elevado no Brasil. Ela foi regulamentada pela Administração Pública, em seus diversos níveis federativos, e se institucionalizou. Todo esse processo é fruto da luta histórica do movimento social negro ao longo do século XX, sua organização política e sua luta perante o Estado brasileiro para a inserção da questão racial na agenda pública brasileira.

Apesar desse avanço, é forçoso lembrar que inúmeras pautas do movimento negro ainda permanecem inalteradas, como a própria questão do encarceramento em massa da população negra e o genocídio negro nas grandes cidades. Alguns indicadores são suficientes para demonstrar que ainda há muito a ser feito para superar a desigualdade racial no Brasil.

Outros indicadores mostram também que os negros estão mais vulneráveis à violência urbana. A chance de um jovem negro ser vítima da violência é maior do que a de um jovem branco, de acordo com o Atlas da Violência 2021, estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ainda segundo o estudo (CERQUEIRA, 2021, p. 49):

Em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra.

O racismo estrutural é tão forte no Brasil que, mesmo após uma década de funcionamento do sistema de políticas afirmativas, a violência estatal e a necropolítica contra os negros não cessou, pior, aumentou. Essas políticas não foram suficientes para alterar as estruturas racistas que sustentam a política, a economia e a sociedade brasileiras. Esse fato vem reforçar a tese de que em países com estruturas sociais baseadas em relações coloniais e racistas a violência é o modus operandi na sociedade (ALMEIDA, 2019). É importante ressaltar a relevância das políticas afirmativas nesse contexto, porém, a questão que se levanta é que elas sozinhas não são capazes de destruir as estruturas coloniais tão solidificadas como as que sustentam a nossa sociedade.

Bibliografia

 1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao. Último acesso: 25/04/2022.

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