Inovação nas contratações públicas: uma conjuntura possível?

13 set, 2021 ● 12 minutos

Confira a entrevista com Virgínia Bracarense Lopes sobre inovação e centralização das compras públicas!

Pensar em inovação no contexto da Administração Pública, especialmente na área de compras – que é tão permeada de regramentos – pode parecer, a princípio, algo difícil ou até mesmo utópico. Afinal de contas, como inovar dentro de um âmbito em que só se pode fazer aquilo que a legislação permite? Estaria a área de licitações fadada ao engessamento e à dependência de alterações legislativas ao passo que o restante da sociedade civil caminha a passos largos?

Para responder a todos esses questionamentos é necessário pensar primeiramente em que consiste a inovação. E sobre esse assunto a entrevistada da Radar IBEGESP deste mês, Virgínia Bracarense Lopes, entende muito bem: ela já atuou em projetos inovadores, como o Almoxarifado Virtual, e também no desenvolvimento e implantação de projetos premiados, como a Central de Compras do Governo Federal, Compra Direta de Passagens Aéreas e TáxiGov.

A resposta à questão da imagem acima é: não! Conforme aponta Virgínia, a inovação pode ocorrer em diferentes graus:

  1. Inovação radical ou disruptiva: como o próprio nome já sugere, são todas aquelas que causam uma mudança brusca e profunda na forma como as coisas são feitas;
  2. Inovação incremental: são aquelas de menor escala e mais pontuais, por meio das quais se agrega um componente ou novo requisito, propiciando a melhoria dos processos.

Nesse sentido, é importante salientar que inovar não pressupõe exclusivamente a criação de algo totalmente inédito e, de acordo com a entrevistada, é justamente essa crença que acaba afastando as pessoas de darem início a algo inovador, tendo em vista que elas pensam que, para tanto, é necessário derrubar determinada estrutura ou solução posta, construindo outra que a substitua.

Inovação em compras públicas: como começar?

Agora que já falamos que é possível sim inovar em “pequenas doses”, essa possibilidade na área de compras públicas fica mais palpável, não é mesmo? Mas como começar?

Ou seja: elas sempre tendem a resolver alguma necessidade. Assim sendo, antes de pensar em qualquer inovação, ela sugere que o gestor público deve refletir sobre alguns aspectos:

Qual o problema a ser resolvido e quais soluções existem no mercado e em outras administrações públicas? Serão mudanças profundas ou mais rasas? O quanto o mercado e a Administração estão preparados para incorporar essas mudanças?

Após essa análise acerca das necessidades da Administração e das soluções já existentes no mercado e em outros governos é hora de verificar se a legislação existente permite ou não a incorporação das soluções encontradas à realidade do setor público.

Para se alcançar uma melhor solução diante da aridez da temática de compras públicas, a entrevistada reforça a importância de um elemento essencial para qualquer processo de inovação: a existência de diálogo entre os principais atores. Para ela, a interação entre os órgãos de Controle (Interno e Externo), o mercado e a própria Administração é de extrema relevância:

É extremamente importante a questão do envolvimento de outros atores, vez que a temática de compras é mais árida, possui questões legais que nem sempre permitirão a inserção de inovações. Então essa lógica de articular os atores, de colocá-los pra dialogarem, se entenderem, mudar um pouco a percepção de que se relacionar com mercado privado não é correto, de que se relacionar com órgão de controle não é recomendado, assim como olhar pra cultura da própria administração, são pontos importantes quando se quer discutir a inovação em compras.

Compras públicas centralizadas: inovação na forma de contratação

De acordo com o documento “O Mercado de Compras Governamentais Brasileiro (2006-2017): mensuração e análise” divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Estado brasileiro possui um elevado poder de compra: 12,5% do Produto Interno Bruto (PIB) é gasto em compras públicas (média calculada para o período 2006-2016).

Diante desse cenário – e considerando a compra pública como um meio para o alcance da eficiência, bem como para a melhoria dos serviços públicos que chegam à sociedade – surge a ideia de centralização, que, segundo a entrevistada, pode ser classificada genericamente em 2 braços:

Centralização administrativa: existem, dentro de um mesmo poder ou ente federativo, diversas áreas de compras contratando os mesmos itens, realizando os mesmos processos, passando pelas mesmas dificuldades de capacitação e legislação. Desta forma, a possibilidade de unificar esforços a fim de executar procedimentos de contratação é muito válida. Estados que já executam essa lógica de centralização: Minas Gerais (MG), que está num projeto de reimplantação e o Rio Grande do Sul (RS), que é o mais maduro na execução dessa lógica.

Centralização da compra em si: consiste em agregar a demanda desses agentes no mesmo procedimento, padronizando e ganhando escala, devendo-se pensar na inovação, induzindo novas práticas para a administração comprar e o mercado vender. Exemplo: Compra direta de passagens aéreas.

Embora a adoção desses modelos – que não são excludentes, nem dependentes – possa trazer consideráveis ganhos de eficiência e economia, a entrevistada pondera que a centralização deve ser analisada conforme a realidade de cada órgão, uma vez que cada necessidade vai ter uma resposta diferente nesse processo. Ou seja, nem sempre a centralização de compras será uma opção vantajosa, uma vez que pode:

  1. Aumentar o risco de não ter fornecedor;
  2. Aumentar o risco de desabastecimento;
  3. Criar dependência da Administração com um único fornecedor;
  4. Comprometer a competitividade.

Virgínia também participou da elaboração da Nota Técnica (NT) nº 68 da Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação e Infraestrutura – DISET, a qual levantou algumas deficiências do mecanismo de centralização mais utilizado para ganho de escala atualmente: o Sistema de Registro de Preços (SRP). Para além dos riscos apontados acima, o SRP não garante 100% de eficácia na obtenção de preços melhores, assim como centraliza em apenas um agente governamental todo o ônus do procedimento licitatório, que não recebe qualquer remuneração para tanto.

Como consequência, a entrevistada comenta que a Nota Técnica propõe um trabalho com diferentes graus de centralização – negociação, padronização, processo – que permita um arranjo capaz de:

Fazer com que a administração se relacione com mais fornecedores pra atender uma mesma necessidade e com isso ganhar em melhores condições de preço, qualidade, tempo de entrega e, a partir de então, ir agregando outros instrumentos, como o cartão de pagamento para agilizar as transações, o marketplace,  que é uma solução que permite que se tenha vários fornecedores dentro de um ambiente, facilitando o acesso do comprador àquele insumo, permitindo que vários fornecedores possam estar ali e socorrer determinada necessidade, tendo mecanismos de disputa dentro dessa contratação.

Aos órgãos que pretendem ingressar na lógica de centralização, a entrevistada, que saiu recentemente da Central de Compras do Governo Federal, recomenda:

Aprenda com o que os outros já fizeram, não é necessário inventar a roda: existem vários órgãos que já fazem centralização de compras nos dois modelos. Além disso, olhe para o seu contexto, para as suas necessidades e possibilidades, pois a centralização envolve maturidade das equipes das áreas de compras, que devem evitar dar passos maiores de uma só vez, sob o risco de descontinuidade na prestação de alguns serviços.

Cases de sucesso: Central de Compras, Compra Direta de Passagens Aéreas, Táxigov e Almoxarifado Virtual

Sob essa perspectiva de inovação e centralização das compras, Virgínia Bracarense já atuou em vários projetos que se tornaram referência, comprovando que é sim possível inovar no âmbito das compras públicas:

Central de Compras do Governo Federal: implementada de fato em 2014, o projeto nasceu com o diferencial de pensar novas estratégias para agregar demandas, não estando pautado apenas na lógica de centralização do procedimento das contratações. Foi criada uma equipe qualificada, com amplo conhecimento em compras que interagia com outros órgãos, que podia parar para identificar problemas, analisar mercado, identificar soluções e condições necessárias para implementação das inovações.

Compra Direta de Passagens Aéreas: também de 2014, o projeto mudou a forma de compra de passagens aéreas nacionais. Ao invés de contratar agências de viagens pra intermediar a compra de bilhetes domésticos,  foi implementada uma espécie de “Decolar.gov”, o qual possibilitou o relacionamento diretamente com as companhias aéreas pra compra de bilhetes na plataforma, com pagamento eletrônico, por meio do cartão de pagamento, dialogando com todos os fornecedores ao mesmo tempo. De acordo com a entrevistada, esse projeto demandou uma atuação legislativa mais intensa, motivo pelo qual atualmente não está em funcionamento, mas há estudos em andamento no Governo Federal para viabilizar seu retorno.

Táxigov: implementado entre 2016/2017, esse projeto trouxe para a palma da mão do servidor a possibilidade de pedir um veículo para atender a sua necessidade de mobilidade. Como consequência, reduziu custos com a compra/locação de carros, despesas com motorista, contratos de manutenção e abastecimento, assim como possibilitou o leilão de 137 veículos que deixaram de ser utilizados pela administração, gerando uma arrecadação de R$1,9 milhão. Para além disso, a solução está em constante expansão: já é utilizada pelo Distrito Federal (DF), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Santa Catarina; os próximos estados a terem o projeto implementado são Minas Gerais (MG), Mato Grosso (MT), Bahia (BA), Rio Grande do Sul (RS) e Rio Grande do Norte (RN).

Almoxarifado Virtual: segundo a entrevistada, surgiu na mesma lógica do Táxigov: ao invés de comprar material de expediente, armazenando em almoxarifados, perdendo material, carga, gastando dinheiro, mobilizando pessoal que faz inventário, por que não ter uma prateleira virtual com esses itens todos? Virgínia ainda frisa que o projeto do almoxarifado virtual não foi uma invenção de sua equipe de trabalho, vez que o Instituto Chico Mendes já o adotava, tendo sido premiado pela iniciativa em 2011.

Todos esses projetos inovadores, em maior ou menor dose, trouxeram inúmeros benefícios:

Apesar dos inúmeros dados sobre o sucesso desses projetos, a entrevistada reforça que nenhum deles é considerado um produto final. Segundo ela, novas soluções podem surgir diariamente e essa análise de melhoria e evolução deve continuar sendo feita.

E como os diferentes atores podem colaborar com esse processo de inovação?

Quando questionada sobre esse aspecto, a entrevistada ressaltou sobre a importância de os líderes criarem um ambiente seguro para a discussão de ideias, engajando a equipe a assumir posturas e comportamentos mais abertos e inovadores, começando realmente de algo pequeno, que pode se tornar um projeto significativo de inovação, como os acima mencionados.

Outro ponto chave é que os líderes – por serem os agentes que vão articular os diversos atores envolvidos no processo – devem estar sempre abertos a receber sugestões e críticas:

Trazer o usuário do serviço ou do bem que a área de compras vai providenciar pra dialogar, pra entender o que ele precisa, quais resultados precisam ser alcançados, qual política pública precisa ser implementada, quais são os elementos que podem ou não podem ser  trazidos pra dentro da contratação, trazendo o diálogo com o órgão de controle e mercado, mostrando pra equipe que isso é saudável. Depende muito da liderança a abertura desses canais: mostrar que eles existem, ser a pessoa quem puxa esse movimento de rede e com isso ir mudando a cabeça e o comportamento da área de compras.

Ademais, Virgínia destaca também sobre a importância do estabelecimento de redes com as demais áreas de compras dos entes governamentais em todos os níveis, com a finalidade de aprender com o que elas já estão desenvolvendo, afinal, nem tudo precisa ser começado do zero, existem outras áreas públicas que já estão fazendo projetos muito significativos.

Virgínia aponta que ainda há uma visão muito negativa dos servidores com relação aos órgãos de Controle Interno e Externo, mas que isso deve ser desmistificado, vez que podem colaborar muito com suas equipes capacitadas, pois têm contato com várias realidades de contratações no país, podendo trazer mais segurança aos gestores quando participam dessas discussões, tornando o caminho menos doloroso.

Por fim, com toda a sua experiência, a entrevistada aponta novamente para o potencial do diálogo entre esses vários atores para a construção de novas soluções e que isso, por si só, já consiste em inovação, pois abre caminhos para que outros o façam também.