O desafio da continuidade e da gestão da informação nas políticas públicas

13 set, 2021 ● 9 minutos

Confira a entrevista de Ricardo Marchiori, antropólogo e diretor técnico de monitoramento e gestão da informação da Coordenadoria de Planejamento e Informação da Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo

Em um cenário em que mudanças políticas podem levar à estagnação de determinados projetos, um dos maiores desafios da Administração Pública é a continuidade. Diante desta realidade, o gestor público deve saber gerir informações e apresentar dados que permitam a continuidade de modelos positivos.

Segundo o antropólogo e diretor técnico de monitoramento e gestão da informação, Ricardo Marchiori, tal gestão não necessita, necessariamente, de um sistema complexo de informação. A prioridade e o maior desafio se concentram em centralizar dados e trazer as boas práticas da gestão da informação para a rotina dos órgãos públicos.

Confira a entrevista!

1)     Um desafio dos gestores públicos é conseguir dar continuidade a projetos e políticas públicas diante de mudanças governamentais. Que tipo de estratégia é necessária para que os projetos públicos tenham continuidade? Como o cenário da descontinuidade de políticas públicas afeta a sua área de atuação (Direitos Humanos)?

É importante notar que outras áreas públicas  têm uma trajetória consolidada e são estruturadas a partir do nível federal. Exemplos disso são o Serviço Único de Assistência Social (SUAS), o Sistema Único de Saúde (SUS), a Educação, entre outras. Para estas áreas, há um certo conjunto de políticas, ações e programas que se mantêm e devem ser entregues com regularidade.  No caso dos Direitos Humanos nunca houve uma coordenação federal; houve programas nacionais que orientavam em      nível federal, mas se indicava pouco o que deveria ser feito em nível municipal. Então acho que é um desafio maior ainda ter continuidade porque é uma incógnita: o que é fazer direitos humanos na administração local?

Uma estratégia para mitigar essa descontinuidade é ter uma gestão da informação apropriada para a equipe de transição saber o que estava sendo feito. Além disso, no caso dos Direitos Humanos especificamente, é importante haver participação social: uma construção conjunta que aproxime uma certa comunidade da política pública ajuda a garantir que em um momento de transição sejam observados os aspectos importantes de continuidade. Neste sentido, vale atentar que a participação deve acontecer na elaboração de planos setoriais e na manutenção de conselhos de direitos. Não necessariamente a relação é pacífica, mas é fundamental a médio prazo.

Para além disso, na minha experiência, é importante que os funcionários de carreira permaneçam durante a transição; eles são absolutamente fundamentais, tanto para estruturar processos como o Plano Plurianual e a reorganização institucional quanto para gerar um pouco de memória. Na falta destes profissionais, é preciso ir atrás de todo tipo de memória, conversar com as pessoas. As vezes algo bem direto, pé no chão mesmo, de ver quem lembra do quê e tentar reunir todas essas informações no momento de transição, antes que se perca.

2) Qual a importância da Gestão da Informação para a Administração Pública brasileira?

A Gestão da Informação é fundamental para sabermos o que está sendo feito, o que tem que ser mantido e para monitorar as políticas públicas. Pensar nisto à luz do caso das políticas transversais de direitos humanos expõe duas questões necessárias:

1) Medir impactos e resultados;

2) Coletar dados internos para monitoramento.

Na nossa experiência, começamos refletindo sobre a segunda questão, e  formamos um grupo de monitoramento que levou a definir quais eram as áreas de atuação da Secretaria, que são principalmente a rede de serviços, as ações de formação e sensibilização em direitos humanos, a participação social e articulação intersetorial. A parte da rede de serviços é um desafio à parte, porque estruturar a gestão da informação de uma rede que possui centros de cidadania LGBTI, de enfrentamento à violência contra a mulher e apoio ao imigrante, para citar alguns, envolve responder à questão de o que significa ter políticas de direitos humanos no nível local, e para isto estamos em um processo de tipificação destes serviços e buscando integração com um sistema de atendimento da Prefeitura, para ter uma gestão de informação mais robusta.

Diante das outras áreas de atuação, tratamos de tentar desenvolver instrumentos simples e sair um pouco do fetiche de que tudo será definido por indicadores complexos, de quantificar tudo, de modo a entender que as informações têm de ser úteis para as áreas finalísticas. Do mesmo modo, é melhor ter alguma informação centralizada do que nenhuma. A gente tem que obter informações mínimas que permitam tanto o monitoramento do que está sendo feito quanto para ajudar as áreas a usarem isso como instrumentos de organização do seu trabalho, de seu registro de memória e atividade.  Quando eu falo ajudá-las é no sentido de dar instrumentos para que elas sistematizem o registro de memória e não para impor a coleta de dados simplesmente pelos dados ou para verificar resultados. Se trata de tentar criar um ciclo de planejamento em que os próprios dados vão ajudando a pensar a continuidade de determinada ação.

Por exemplo, nós temos alguns programas de elevação escolar e transferência de renda para pessoas em situação de rua ou pessoas trans. Se a gente pensa que é um dado importante saber a empregabilidade dessas pessoas, se efetivamente esse programa gera maior empregabilidade, deve ser criada uma rotina de buscar e alimentar essa informação. Isto gera um registro muito valioso dos rumos da própria política pública, o que permite que o projeto seja aperfeiçoado.

Outro ponto, que também dialoga com a questão da continuidade, é a aproximação com a sociedade civil, com uma comunidade epistêmica interessada na política pública, porque muitas vezes podemos ter uma gestão da informação razoável, mas não temos tempo ou recursos humanos para parar e avaliar, sistematizar. Neste sentido, parcerias com pesquisadores e grupos de pesquisa são muito interessantes e algo que gostaríamos de explorar mais.

Sobre a primeira questão, acredito que é o maior desafio quando pensamos em políticas transversais: como mensurar resultados de políticas de direitos humanos no nível municipal? Considerando que direitos humanos envolvem toda forma de garantia de direitos fundamentais, é um caminho garantir o acesso a serviços públicos, dados de violações, escolher quais indicadores monitorar, estruturar uma área específica e realizar parcerias com outros órgãos que produzem estatísticas oficiais e administrativas. É um desafio parecido, por exemplo, com o de mensurar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que parte de algo mais abstrato.

3)     O modo como a informação é organizada e a comunicação é estabelecida, é capaz de afetar a continuidade de projetos sociais e políticas públicas?

Sim. Organizar a informação e poder descrever os dados de resultados permite que os projetos sejam bem comunicados internamente, ao gabinete, ao chefe do Executivo, a órgãos de controle. Uma segunda etapa depois de organizar internamente a gestão da informação é pensar em divulgação, tanto a divulgação já sistematizada como, por exemplo, um relatório, um boletim, quanto para gerar e oferecer dados abertos à população. No nosso caso, este seria o momento de comunicar e expor o trabalho que a Secretaria de Direitos Humanos faz para a comunidade que nos envolve. A gente entende que isso ajuda a garantir a continuidade das políticas porque aquilo que está funcionando, que gera informações e envolve pessoas, é mostrado para a sociedade acompanhar.

Voltando à questão da continuidade, isso tudo permite que se colha frutos na hora de elaborar o Plano Plurianual e o Programa de Metas, uma vez que sua elaboração é muito importante para a garantia da continuidade de políticas públicas da área de direitos humanos. Quando não há clareza de quais ações estão sendo tocadas e quais resultados elas estão gerando, não se sabe o que é prioridade para o PPA. Agora, se a gestão da informação é organizada no planejamento, tanto orçamentário quanto estratégico, é possível inserir no PPA as prioridades e o que tem que ser mantido.

Por fim, para falar de uma experiência positiva no sentido de organização, é possível mencionar a reestruturação da Ouvidoria de Direitos Humanos, que é um órgão central que recebe denúncias de violações de direitos humanos e presta um atendimento humanizado. Esta Ouvidoria está sendo descentralizada em algumas subprefeituras em parceria com o Programa Descomplica da Secretaria de Inovação e Tecnologia. E essa é uma maneira da gente pensar na nossa gestão da informação no que tange as denúncias de violações de direitos. É como se a gente tivesse um braço para coletar denúncias diretamente nos territórios e conhecer melhor sua realidade. Isso é importante porque permite não depender tanto dos outros órgãos; não necessitamos tratar outros indicadores para ter uma ideia da demanda local, eles permitem fazer a Secretaria estar presente nos territórios, levar as políticas de direitos humanos e articulá-las no território com outros serviços, a partir do atendimento presencial. Como coletamos dados e informações diretamente, previmos a apresentação de relatórios sobre as atividades da Ouvidoria em audiências públicas semestrais, de maneira a praticar a transparência e aproximar organizações que trabalham com proteção e defesa de direitos, buscando ampliar o número de stakeholders interessados nela, para fortalecê-la institucionalmente e criar uma continuidade.

Ricardo Marchiori é antropólogo e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. É mestrando pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP e atua como Diretor Técnico de Monitoramento na Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.