O poder da capacitação e do desenvolvimento dos servidores públicos

Marina Macedo Rego

28 out, 2021 ● 12 minutos

Rosinadja Morato explica porque é preciso investir no desenvolvimento dos servidores

Desmotivação. Sensação de estagnação. Falta de capacitação. Esses 3 dissabores costumam caminhar juntos na Gestão Pública. Afinal, servidores que não são desenvolvidos, não conseguem se manter motivados por muito tempo, certo?

Foi pensando nisso que Rosinadja Morato, analista do IBGE, criou o EconCine: um projeto que capacita servidores públicos por meio da discussão sobre filmes. A iniciativa foi essencial para o setor em que Rosinadja atua, melhorando indicadores e até mesmo a autoestima dos participantes. Pelo trabalho inovador, a profissional sergipana foi vencedora do Prêmio Espírito Público em 2020. E, nesta publicação especial do Radar IBEGESP, tivemos o prazer de conversar com ela. Confira! 

PERGUNTA: O IBEGESP é um Instituto focado na educação e na inovação, tendo formado mais de 100 mil servidores públicos. Em nossa trajetória, percebemos o quanto é necessário reverter a ideia de que o servidor e a servidora chegam à Administração Pública completamente preparados para assumir sua função. Você concorda? Acha necessária uma integração ou um programa de desenvolvimento que capacite e acolha este profissional ainda no início de sua carreira?

RESPOSTA: Sim, concordo. A forma de seleção na Administração Pública sempre apresenta um desafio enorme de nivelamento. Podemos tanto receber servidores com muita experiência, como servidores que têm muito conhecimento teórico, mas que nunca trabalharam. Em muitas situações, as instituições públicas até oferecem cursos de formação inicial ou capacitações técnicas diversas em formato EAD, os famosos treinamentos específicos. Mas sinto falta de uma capacitação também focada no modelo comportamental que a instituição pretende incorporar em sua cultura. Essa formação é essencial para evitar diversos problemas de choque cultural que encontramos em chegadas de grandes grupos concursados em relação aos servidores ali existentes.

PERGUNTA: Como você enxerga o atual cenário de treinamento e desenvolvimento na Gestão Pública? Acha que há um equilíbrio na oferta de cursos focados em temas técnicos, comportamentais e sociais? 

RESPOSTA: O cenário de T&D na gestão pública evoluiu muito na última década. Os acessos a eventos de capacitação eram restritos e exigiam uma série de condições que desanimava a participação da maioria dos servidores. Atualmente, há um leque enorme de cursos e eventos gratuitos e de alta qualidade. Nos últimos 4 anos, mais especificamente, os cursos voltados ao comportamento (desenvolvimento de soft skills) cresceram significativamente, bem como aqueles focados em sustentabilidade, tecnologias sociais, entre outros, mas ainda sinto falta de uma cultura de disseminação da importância desses cursos em âmbito intraorganizacional, ficando muito a cargo da curiosidade do servidor de buscar esses temas transversais. Acredito que com os avanços dos projetos que envolvem o Plano Nacional de Desenvolvimento de Pessoas, essas questões tendam a evoluir ainda mais positivamente.

PERGUNTA: Em sua atuação com a Gestão Pública, o IBEGESP nota que a motivação dos servidores pode ser um tema sensível em determinados contextos. Você considera que a falta de capacitação está atrelada à eventual desmotivação destes profissionais em alguns cenários?

RESPOSTA: Sim, acredito muito nisso. Quanto mais você se capacita, mais aumenta sua ânsia de participar de eventos estratégicos na organização para aplicar os conhecimentos adquiridos. É muito frustrante não ter as condições estruturais para implementar os novos conceitos apreendidos, não ter espaço ou apoio para isso. Outras questões também entram em cheque como a própria remuneração que não acompanha os esforços extras que os servidores venham a empenhar. Motivação no serviço público é sempre um tema muito complexo e varia demais, de instituição para instituição e de servidor para servidor. No entanto, percebo que ainda assim temos um grande efetivo que se realiza buscando novos conhecimentos e trazendo inovações para suas atividades, e muitas vezes tudo que eles precisam é de reconhecimento e apoio da chefia para realização de suas ideias. Se esse modelo fluir, ganhamos todos: instituição, servidores e sociedade.

PERGUNTA: Em 2018, você implementou o projeto de capacitação EconCine. Por que essa iniciativa foi necessária? No que consiste o projeto?

RESPOSTA: A iniciativa surgiu espontaneamente entre a equipe de técnicos num período de baixa demanda das atividades desenvolvidas. Em projeto anterior, já havíamos feito diagnóstico de que precisávamos desenvolver competências além das técnicas na equipe. Fomos inclusive premiados no Concurso de Inovação Institucional em 2018 com o trabalho realizado, que foi inserir no treinamento das novas equipes operacionais elementos relacionados ao planejamento estratégico, gestão do tempo, gestão de processos e comunicação, o que gerou visível impacto positivo no desempenho das atividades de campo. Como falei anteriormente, as equipes ingressantes via concurso são muito diversas, para um cargo de nível médio a gente recebe desde nível médio a graduados e pós-graduados das mais diversas formações: engenharia, direito, pedagogia, história, medicina, odontologia, fisioterapia, sociologia... imagine o que é lidar com tanto conhecimento diverso para uma atividade que não requer conhecimento complexo? E nosso público é essencialmente a comunidade. Pessoas que precisam ser contactadas, nos atenderem e serem atendidas por nós. Então precisamos ter em nosso leque de conhecimento habilidades e competências voltadas para empatia, comunicação, resiliência, bem como a aquisição de conteúdos relacionados à dinâmica social como diversidade, questões de gênero, inclusão, racialidade, entre outros. E tudo isso sem perder o foco na gestão, nos indicadores de resultados, na disciplina e nos prazos e metas...  E como conquistar todo esse conteúdo de forma suave? Esse é o cerne do EconCine. No projeto, abordamos todos esses conteúdos através de metodologia fílmica, na qual elegemos uma temática a ser discutida, convidamos um especialista/curioso da área, selecionamos um filme/documentário relacionado à temática escolhida, assistimos e nos reunimos para discutir como aquela temática pode ser inserida no nosso contexto profissional e pessoal. Com isso, já realizamos mais de 50 eventos, com 2 horas de duração e uma média de 30 a 35 participantes por evento. Temos alcançado a cada vez um público mais amplo, não só da nossa instituição, mas como de outras que participam como convidados.

PERGUNTA: O IBÊ busca continuamente somar esforços para combater o estigma que atinge o servidor e a servidora pública. Infelizmente, sabemos que há um forte discurso social que apresenta esses profissionais como acomodados ou avessos ao aprendizado. Como a sua experiência com o EconCine consegue confrontar esse mito? 

RESPOSTA: Infelizmente esse estigma nos persegue e muito me incomoda, principalmente porque nas duas instituições públicas que tive a honra de trabalhar, incluindo a atual, tenho colegas que são altamente motivados e focados em resultados. Que literalmente não param de se aperfeiçoarem e tentarem contribuir cada vez mais para a melhoria dos servidos prestados. São horas e horas debruçados na busca de soluções e para o atendimento das necessidades do nosso público. Durante a pandemia isso foi ainda mais visível, quando vários de nós extrapolamos em muito o tempo de nossas jornadas de trabalho para manter o padrão de atendimento. Então essa injustiça é doída. Claro que não vou querer me iludir de achar que não temos colegas que fazem o mínimo. Mas tenho a certeza de que esses são, de longe, uma minoria. O EconCine nos prova isso a cada sessão pois a maioria dos nossos participantes, tanto os da assistência como os convidados moderadores, são servidores públicos que dedicam parte de seu tempo tanto para disseminarem (palestrantes), como para adquirirem (participantes) conhecimentos que servirão para ampliar suas capacidades de discernimento e relacionamento pessoal e profissional. E nada disso requer remuneração ou obrigatoriedade. É voluntária a dedicação e o interesse em evoluir como servidor.

PERGUNTA: Sabemos que o Brasil é um país marcado pela iniquidade social, evidenciada, inclusive, pelo desigual acesso ao serviço público. No EconCine, se debatia esse tipo de questão?

RESPOSTA: Sim. Uma das vezes que debatemos sobre isso foi com a exposição do filme Que horas ela volta?, que fala sobre a saga de Jéssica, mãe solteira e filha de retirante nordestina que trabalha como doméstica na casa de uma família de alta classe em São Paulo, que sai do nordeste para participar do vestibular da USP, em detrimento de Fabinho, filho do patrão da mãe de Jéssica, estudante das melhores escolas, com motorista particular e pleno acesso a uma infraestrutura familiar e tecnologias de suporte e privilégios. O contraste das duas trajetórias e as oportunidades tão diversas permearam a discussão em torno da política de cotas.

Nesse evento falamos ainda da importância das ações afirmativas e dos percalços percorridos por mulheres nordestinas e de baixa renda para garantirem melhores condições de futuro e acesso ao ensino público de qualidade, uma situação na qual a chamada meritocracia foi colocada em cheque.

PERGUNTA: Você foi vencedora do Prêmio Espírito Público em 2020 na categoria Gestão de Pessoas. Como foi a experiência? O que acha desse tipo de medida de reconhecimento?

RESPOSTA: O Prêmio foi uma experiência tremenda em todos os sentidos. Primeiramente porque a gente nunca acha que o pouco que a gente faz pode fazer diferença quando espraiado por aí afora, o que me faz refletir sobre quantas iniciativas locais devem estar acontecendo em tantas outras instituições esperando uma oportunidade de ser conhecida, disseminada e aprendida por todos nós. Daí chegamos à importância de iniciativas como essa premiação. Além do reconhecimento almejado por todos que se empenham para um serviço público melhor, iniciativas como o Prêmio Espírito Público acabam estimulando a presença cada vez maior de boas práticas na gestão pública, quer seja pelos critérios do prêmio que buscam ações com evidências comprovadas, o que estimula os candidatos à construção de indicadores e painéis de desempenho para o ateste da efetividade da ação (algo extremamente necessário e carente no serviço público), bem como na disseminação de ações que podem ser replicadas por outros órgãos a partir dos exemplos premiados.

PERGUNTA: Qual sugestão você daria para quem quer iniciar um projeto de desenvolvimento e capacitação da sua equipe e órgão público?

RESPOSTA: O diagnóstico das necessidades de desenvolvimento é de suma importância, mas deve fugir do modelo padrão de LNT (levantamento das necessidades de treinamento). É importante que as equipes estejam envolvidas nesse processo e se manifestem quanto àquilo que necessitam para melhorarem suas habilidades. Sem esse envolvimento, teremos mais do mesmo. Além disso, valorizar as competências existentes na casa e transformar as pessoas em agentes de desenvolvimento de parceiros e de si mesmo. Quando trabalhamos em grupo, inclusive na aquisição de conhecimento, nos tornamos mais integrados e temos maior adesão ao processo pelo apoio/discussão gerados pelos pares. Quando somos convidados a compartilhar nossos conhecimentos com nossas equipes, nos sentimos valorizados e apoiados pelos colegas. Por fim, começar a capacitação pelas lideranças, transformando-as em lideranças capacitadoras. Muitos cargos de chefia no serviço público são exercidos por bons técnicos que não são preparados para serem gestores, por consequência, não incentivam suas equipes a buscarem desenvolvimento e/ou não conseguem fazer o alinhamento da capacitação aos objetivos estratégicos organizacionais. A liderança é fator chave nesse processo. Se o líder não trata o alinhamento da capacitação aos objetivos da estratégia organizacional e, consequentemente, as equipes gerenciadas não vislumbram qual seria a diferença de estarem capacitadas ou não para o resultado daquilo que entregam, não consigo enxergar nenhum projeto de capacitação que possa dar certo nessas condições. E o que mais vemos por aí é que o foco da capacitação sempre começa da base operacional, deixando os líderes restritos às tomadas de decisão do processo, mas longe do desenvolvimento das habilidades requeridas. 

PERGUNTA: Por fim, qual recado você gostaria de deixar às servidoras e servidores públicos no dia 28/10 (data em que se celebra a importância da profissão)?

RESPOSTA: Prezados colegas servidores, nós somos sinônimos de resiliência e temos como missão entregar serviços essenciais a toda a nossa sociedade. Temos o privilégio de sermos clientes e fornecedores de nossos próprios recursos e, com isso, maior é a nossa responsabilidade de prestarmos serviços cada vez melhores e com maior qualidade. Não nos deixemos abater pelas críticas e/ou ações que visam precarizar e enfraquecer nossa autoestima e nossas condições de trabalho. Ao longo da história conseguimos superar diversas barreiras e nos firmamos enquanto pessoas qualificadas e merecedoras. Como diz a sabedoria popular: ninguém joga pedras em árvores sem frutos... e nosso valor se manifesta a cada recorde de inscrições nos concursos públicos que abrem pelo Brasil... se não fôssemos bons, por que tantos gostariam de ser como nós? Sigamos firmes.