Organizações civis, representação política e estratégias para a definição de agendas públicas

07 dez, 2021 ● 7 minutos

Artigo de opinião*

Neste exato momento é provável que novas organizações civis (OSCs) estejam surgindo, dividindo-se e compondo posições de poder com outras organizações semelhantes, definindo e redefinindo continuamente seus quadros, na tentativa constante de obter reconhecimento e legitimidade para garantir a implementação de suas agendas junto a governos locais e nacionais. 

Orientadas pela legislação específica em vigor e por suas causas particulares, as organizações civis se posicionam em diferentes áreas dentro da vasta diversidade de interesses públicos e privados existentes no país, desdobrando-se juridicamente em organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs). 

Essa dinâmica permanente leva-nos a pensar que, a despeito das formulações dos estudiosos sobre o tema das agendas estratégicas de políticas públicas, as organizações civis se ramificam em ritmo intenso e não precisam pedir autorização prévia aos teóricos para nascerem[1].

  1. O campo das organizações civis no Brasil

A coleta de dados sobre as organizações civis no Brasil ficou a cargo do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[2]. Tanto as pesquisas do Ipea quanto as do IBGE partem das premissas metodológicas presentes no Handbook on Non-Profit Institutions in the System of National Accounts, que define as OSCs a partir de cinco critérios: 1) instituições privadas; 2) sem fins lucrativos; 3) institucionalizadas; 4) autoadministradas; 5) voluntárias.

Por utilizarem bases de dados distintas, o número total de organizações identificadas pelo Ipea e pelo IBGE apresenta diferenças. Entretanto, ambas as pesquisas revelam perfis muito próximos no que diz respeito aos padrões existentes entre essas organizações: estão majoritariamente localizadas na região Sudeste e são formadas, em sua maioria, por mulheres[3].

Se partirmos dos resultados obtidos pelo Ipea, presentes no relatório Perfil das Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público em Atividade no Brasil (2020)[2] veremos que o desempenho das organizações civis no âmbito das políticas públicas ocorre em áreas muito diversas, a exemplo da cultura, educação, saúde e assistência social. Ainda de acordo com os dados do instituto, em 2020 eram aproximadamente 815.676 organizações civis[4], o que demonstra a importância de considerarmos sua influência diante da gestão pública.

  1. Como discursos podem se tornar organizações?

Em seus estudos sobre a formação de organizações sociais, Sidney Tarrow afirma que há na ação coletiva uma necessária carga emocional que contribui para a construção de uma visão de mundo compartilhada pelos integrantes das organizações, fomentando a transição da passividade para a ação propriamente dita[5]

Desse modo, as pessoas – ou, no jargão das ciências sociais, os “atores” – se mobilizam construindo o significado da sua ação a partir das condições específicas do contexto político e social no qual estão, bem como da identidade que partilham com os demais membros das organizações em que atuam.  Assim, as interações entre as pessoas dispostas nessas organizações são frequentemente revistas e alteradas.

O significado da ação só se torna efetivo quando há também uma história que conecta os eventos e dá a eles um sentido linear. Dessa forma, é interessante perceber que todas as organizações possuem uma interpretação própria de sua agenda. Essa interpretação, por sua vez, servirá para consolidar a posição que essa organização possui em relação às demais que estão presentes em seu espaço de diálogo. 

Voltando aos nossos exemplos geralmente utilizados aqui no Radar IBÊ, sobre políticas educacionais, podemos pensar, por exemplo, nas organizações civis que se dedicam à educação infantil, enquanto outras estão relacionadas ao ensino médio, ou nas organizações especializadas em estabelecer métricas, avaliações e políticas de gestão por resultados, diferente daquelas que focalizam a implementação de matrizes curriculares e políticas processuais de gestão. Todas elas possuem em comum uma história prévia que serve como justificativa diante da divisão do trabalho organizacional presente no campo da educação, bem como de suas especializações apresentadas e negociadas junto ao poder público. 

Embora o termo tenha caído em descrédito devido ao seu uso excessivo e – quase sempre – indevido, estamos tratando da noção de narrativa – ou storytelling, se seguirmos a pesquisadora Francesca Polleta[6] – pensada aqui como um fio interpretativo capaz de conectar as identidades das pessoas a ações coletivas promovidas pelas organizações.  

  1. Diferentes lentes para diferentes organizações

No campo nacional das OSCs há diferenças significativas no que diz respeito ao poder e ao escopo. Não somente pela concentração territorial, como foi dito anteriormente, mas também no que concerne à profissionalização dos serviços prestados. Como exemplo, podemos pensar em dois casos extremos: uma organização na Zona da Mata mineira que funciona como creche, e uma fundação ligada a uma multinacional sediada em São Paulo, que atua com formação de lideranças e gestores da educação. Ambas são organizações civis e estão inseridas no campo educacional. Mas sabemos que as duas não possuem a mesma capacidade de definição da agenda pública nacional, ou mesmo local. 

Diz o poeta e ensaista mexicano Octavio Paz que “todos os produtos de uma época, desde seus utensílios mais simples até suas obras mais desinteressadas, estão impregnados de história, isto é, de estilo. No entanto, essas afinidades e parentescos cobrem diferenças específicas[7]. Pois bem, guardadas as devidas particularidades da obra poética, podemos pensar no quanto essas considerações são aplicáveis também às questões organizacionais da gestão pública.  

O que determina atualmente a definição de agendas públicas está relacionado aos poderes político, econômico e cultural distribuídos entre essas organizações. Por isso, é importante observá-las com atenção, utilizando diferentes lentes que possibilitem o melhor enquadramento e a devida focalização para a sua análise. 

[1] Essa provocação foi feita inicialmente por Adrián Gurza Lavalle, Peter P. Houtzager e Graziela Castello, em artigo de 2006, intitulado Representação política e organizações civis: novas instâncias de mediação e os desafios da legitimidade [disponível aqui - https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/DZWNNCzyCVyrSKBJmX9YZHy/?format=pdf&lang=pt]

[2] No caso do Ipea, trata-se do Mapa das Organizações Sociais, disponível aqui - https://mapaosc.ipea.gov.br/. Já o IBGE apresenta sua pesquisa As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil (FASFIL), [disponível aqui - https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101647.pdf]

[3] Sobre as proximidades e distâncias metodológicas das pesquisas do IPEA e do IBGE, ver a nota técnica de Janine Mello e Pedro Gomes Andrade, disponível aqui - http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9322/1/NT_25_Diest_Diferen%c3%a7as%20metodol%c3%b3gicas%20entre%20mapa%20das%20OSCs_Ipea%20e%20FASFIL_IBGE.pdf

[4] Dados extraídos do Mapa das OSC em novembro de 2021. Disponível em: https://mapaosc.ipea.gov.br/mapa

[5] Em Power in movement: social movements and contentious politics(Cambridge University Press, 2006), Sidney Tarrow afirma que essas interações são construídas “on frames and emotions oriented toward mobilizing people out of their compliance and into action in conflitual settings” (TARROW, 2006, p.63).

[6] Para saber mais sobre a noção de narrativa da forma como é utilizada aqui, recomendamos a obra de Francesca Polleta, intitulada It was like a fever: storytelling in protest and politics. (University of Chicago Press, 2006).

[7] Trecho retirado da obra O Arco e a Lira (Editora Nova Fronteira, 1982, tradução de Olga Savary).

*Os artigos aqui divulgados são enviados pelos redatores voluntários da plataforma. Assim, o Radar IBEGESP não se responsabiliza por nenhuma opinião pessoal aqui emitida, sendo o conteúdo de inteira responsabilidade dos autores da publicação.

César Niemietz é mestre em Sociologia pela USP e desenvolve pesquisa de doutorado a respeito das relações entre advocacy, gestão pública e políticas educacionais no Brasil.