Qual é o papel das práticas de advocacy na formulação de políticas públicas?

09 nov, 2021 ● 6 minutos

Entenda a relação entre advocacy, interesses públicos e privados

Na última coluna, conversamos sobre como é importante compreender as diferentes formas de apreciação das questões públicas por parte do legislativo, pensando mais especificamente nas comissões parlamentares. Desse modo, prosseguiremos com a discussão, tomando como eixo a noção de representação e como ela tende a ocorrer no espaço político através das práticas de advocacy.  

O texto será dividido em três partes. Na primeira, definiremos o conceito de advocacy, e veremos o porquê desse termo ter se difundido cada vez mais em nosso debate sobre a agenda governamental e as políticas públicas. Em seguida, refletiremos a propósito da relação entre advocacy, interesses privados e interesses públicos. Por fim, retornaremos à questão das comissões, com o objetivo de compreender o papel desenvolvido por atores e grupos localizados em espaços externos à política institucional, bem como a sua importância na definição das matérias legislativas apreciadas pelos parlamentares. 

(1) O que são práticas de advocacy? 

A ideia de representação política sempre foi uma das principais linhas de interesse dos estudiosos das políticas públicas. Desse modo, há de se imaginar que a produção sobre o assunto seja extensa, a ponto de tornar irreal qualquer tentativa de redução a um único e definitivo entendimento. No entanto, se começarmos a puxar os fios que compõem o emaranhado de interpretações sobre representação, será grande a probabilidade de nos depararmos com o conceito de advocacy. Portanto, faz sentido começar por ele. Afinal de contas, o que significam as práticas de advocacy e quem as faz?

Em uma definição minimalista, podemos compreender advocacy como uma prática de intervenção direta em favor dos interesses de um grupo que compartilha reconhecimento recíproco. Sobre a intervenção, pode-se dizer que é realizada de diferentes modos, com diferentes objetivos, e não precisa ser necessariamente operada por profissionais do meio jurídico, uma vez que os cidadãos podem se organizar para argumentar em benefício de seus interesses comuns, em espaços de formulação de políticas e de leis, como é o caso do Congresso. 

Como exemplo recente e próximo, podemos pensar nas práticas de advocacy realizadas em função dos usos de fundos públicos destinados à educação básica no Brasil. Nesse caso, diferentes grupos relacionados ao campo educacional, provenientes de bases sociais diversas – professores e empresários, por exemplo – se organizaram com o propósito de pautar a destinação orçamentária para a educação básica no país. Para isso, utilizaram-se de expedientes e espaços diversificados – a exemplo dos jornais, redes sociais e blogs –, visando promover seus posicionamentos junto à construção do texto legal que definiu o atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).  

Tais visões de mundo, como se é de imaginar, nem sempre foram ou serão concordantes.

(2) Advocacy de interesses públicos ou de interesses privados?  

Uma dúvida de grande interesse para nós que lidamos direta ou indiretamente com práticas e discursos de gestão, pode ser formulada da seguinte maneira: o quanto há de público, de fato, na gestão pública? Como resposta, não vamos nos aprofundar muito nessa seara, mas vale ressaltar, como fizeram importantes autores, que a construção da ideia contemporânea de público[1], e mesmo do conceito de administração pública[2], se avolumou significativamente ao longo dos últimos séculos. 

Mais recentemente, ao menos desde a década de 1960, houve uma tendência acentuada no que concerne àquilo que uma importante autora identificou como a passagem das políticas de redistribuição para as políticas de reconhecimento[3]. Em outras palavras, grupos que compartilhavam reconhecimento cultural mútuo, para além das tradicionais questões relacionadas ao trabalho e à renda, passaram a exercer influência crescente na produção da agenda governamental dos estados democráticos. 

A partir dessas breves considerações sobre o público e o privado, pode-se dizer que houve, nos tempos contemporâneos, ampliação e diversificação das comunidades políticas (policies communities) e das redes políticas (policy networks). Essa pluralidade crescente de interesses e organizações passou a tornar igualmente diversificados os espaços de diálogo no âmbito do Estado. Desse modo, a relação entre interesses públicos e privados foi se ramificando e ficando cada vez mais complexa. 

Os elementos indicados até aqui nos desafiam a refletir de maneira sempre atualizada sobre as pautas apresentadas pelos grupos de interesses nos espaços públicos. Sabemos que interesses privados podem ser indevidamente confundidos com interesses públicos – afinal “as empresas não falam sozinhas”, como diria certo poeta contemporâneo mineiro[4]. Entretanto, dentro do modelo de Estado democrático, a ideia constitucional básica é a de que interesses privados também devem contribuir para a construção de um terreno comum de interesse público.

(3) Ainda sobre as comissões e algumas práticas recorrentes

Nos textos aqui no blog, optei por apresentar uma visão mais formal a respeito da construção das agendas governamentais e dos processos de decisões políticas. A escolha por essa abordagem tem o objetivo de identificar os muitos fluxos que desembocam nos espaços propositivos das políticas públicas. Isso significa que deixaremos um pouco de lado, provisoriamente, a dimensão do conflito, presente na formação das arenas públicas. 

Por fim, resta-nos refletir sobre a dimensão técnica da prática de advocacy, uma vez que esta será fundamental para a eficácia da ação. Assim, o domínio da integralidade do processo legislativo e a compreensão do funcionamento dos espaços decisórios para a formação de agendas governamentais são características que definem o sucesso da intervenção. Ou seja, o estudo da tramitação das matérias legislativas, dos rituais e dos tempos parlamentares, bem como a inserção em espaços consultivos e deliberativos das instituições políticas, são questões sobre as quais os grupos de advocacy devem se dedicar.

Notas:

[1] Ver, por exemplo, o fundamental estudo de Richard Sennet, em O Declínio do Homem Público.

[2] Considerado um dos primeiros formuladores da administração pública, Woodrow Wilson escreveu suas reflexões ainda no final do século XIX. 

[3] Trata-se da filósofa Nancy Fraser. O debate a respeito da mudança na agenda política na segunda metade do século XX, a partir das noções de redistribuição e reconhecimento, pode ser acompanhado também nas obras de Axel Honneth, Charles Taylor e Theda Skocpol.

[4] O poeta em questão é Bruno Brum, e o poema compõe a obra Mastodontes na Sala de Espera.

César Niemietz desenvolve pesquisa de doutorado (USP) a respeito das relações entre advocacy, gestão pública e políticas educacionais no Brasil.