Conversamos com Edgard Lombardi, da Secretaria de Planejamento e Gestão da Prefeitura Municipal de Fortaleza
Chegamos ao fim de mais um ano. E que ano! E para realmente ser um dos mais movimentados da atualidade, 2020 também teve eleições, o que causou, inevitavelmente, reflexões sobre tudo o que passou e olho vivo nas intenções da administração pública sobre o que virá. Exatamente por isso, vamos falar aqui sobre transição governamental e (des)continuidade dos serviços públicos e administrativos.
Esse agitado 2020 obrigou o desenvolvimento de políticas públicas específicas para o combate à pandemia e seus efeitos, trazendo à tona discussões sobre ações dos governos que podem ou não continuar durante uma transição de mandato e o porquê de muitos serviços serem extintos. Além disso, cargos e salários de muitos servidores podem ser afetados com a mudança de gestão administrativa. E por que isso acontece? O que falta para tornar as políticas mais efetivas e menos suscetíveis aos ideais de cada administração?
Para falar sobre isso, entrevistamos Edgard Lombardi, assessor de planejamento institucional na Secretaria de Planejamento e Gestão da Prefeitura de Fortaleza, que é membro da equipe de transição de governo e deu dicas valiosíssimas sobre como executar essa tarefa com responsabilidade, organização e preparo.
PERGUNTA: Conte um pouco sobre sua trajetória e como você “tomou gosto” por assuntos relacionados à gestão pública
Resposta: Para mim, trabalhar no setor público está mais ligado ao meu propósito de vida do que a uma pretensão unicamente profissional. E por ser tão valoroso, é muito difícil especificar o momento no qual decidi percorrer este caminho, sendo uma vocação constituída ao longo de minhas vivências.
Nasci na periferia de São Paulo e estudei em escola pública, espaços nos quais testemunhei como a falta de oportunidades e ações efetivas do Estado são especialmente perversas para a juventude.
Quando me formei no ensino médio, consegui uma bolsa de estudos integral pelo Programa Universidade para Todos (ProUni), com a qual me graduei em Administração. Foi por meio de uma política pública de educação que pude acessar lugares os quais jamais imaginei que pudesse chegar e me fez entender, dentre outras coisas, que muitas portas ainda permaneciam fechadas para os grupos mais vulneráveis de nossa sociedade. Não havia negros em minha turma, por exemplo.
No coletivo de bolsistas do qual fazia parte, vi colegas, especialmente mulheres da periferia, trancando suas matrículas por não terem condições práticas de permanência na Universidade (custos com transporte, alimentação etc.). Os dilemas da desigualdade social me incomodavam profundamente.
Depois de alguns anos na iniciativa privada, atuei como professor de nível técnico na rede pública estadual. Trabalhando na ponta, junto com meus colegas professores e alunos, presenciei a luta diária em sala de aula com a falta de recursos e o baixo apoio institucional. Com essas vivências, aprendi que ideias como o programa de bolsa universitária, quando concretizadas e plenamente executadas, são potencialmente transformadoras no combate à desigualdade e dão condições favoráveis à mobilidade social.
Por outro lado, uma gestão pública problemática pode ser um resistente obstáculo na busca dos mesmos resultados. Poderia, portanto, unir minha formação em administração com minha vontade de contribuir com transformação social em nossa sociedade. E foi com essa motivação que me inscrevi e fui selecionado pelo programa de trainees da Vetor Brasil, organização sem fins lucrativos que recruta, capacita e aloca profissionais diversos, em histórias e formação, para atuar na gestão pública em diversas prefeituras e governo estaduais pelo Brasil.
Em 2017, vim para o Ceará e iniciei minha trajetória na gestão pública na Secretaria Estado de Planejamento e Gestão. Desde então, sigo na área.
PERGUNTA: E sobre Transição de Governos, conte sua experiência sobre o assunto, como se deu seu conhecimento nisso.
Resposta: Quando fui trainee de gestão pública no Governo do Estado do Ceará, minha missão era apoiar as secretarias estaduais na implementação do modelo da Gestão Pública para Resultados (GpR). Essa nova filosofia de gestão, grosso modo, coloca o cidadão como o eixo principal da construção e definição de políticas públicas, em oposição às tradicionais políticas de gabinete. Para saber se a ação governamental está gerando ou não o impacto desejado, a mensuração de sua efetividade ocorre por meio do acompanhamento de indicadores, cujos resultados devem ser constantemente monitorados e avaliados, numa perspectiva de longo prazo.
Foi nesse contexto que diversas questões surgiram: como identificar um problema social, construir soluções de forma participativa, acompanhar e avaliar indicadores de resultados em apenas um ano, que correspondia ao período do trainee? Conversando com servidores e colegas mais experientes, logo constatei que, muitas vezes, nem mesmo quatro anos, espaço de tempo de uma gestão eleita, são suficientes para que todo o ciclo de gestão de uma política pública possa ser realizado em sua plenitude.
Considerando o tempo próprio – e muitas vezes moroso – dos processos e trâmites do setor público, como definir, implementar e avaliar estratégias de longo prazo, sabendo que a equipe no início do projeto provavelmente não será a mesma ao final dele? Como evitar a descontinuidade de iniciativas e projetos públicos com a mudança de gestão? Todas essas dúvidas trazem consigo uma premissa fundamental: estar no governo é temporário, os governos passam, a cidade, o estado e o país, ficam. Até mesmo servidores efetivos mudam de funções ao longo de suas carreiras.
Ao final do meu tempo de trainee na Secretaria que atuei, por exemplo, a gestão do conhecimento foi materializada por meio de relatórios de atividades e reuniões com gestores e o profissional que iria me substituir nos projetos dos quais fazia parte.
PERGUNTA: Sobre Transição de Governos, como fazer isso de forma eficiente e imparcial?
Resposta: Na minha visão, o principal objetivo do processo de transição governamental é garantir que as informações mais importantes e urgentes sejam transmitidas da equipe da gestão atual para a equipe da gestão eleita, garantindo a plena execução dos serviços públicos mais essenciais e as condições para que os projetos estratégicos em andamento não sejam descontinuados. Em essência, busca-se consolidar a gestão do conhecimento.
Algumas boas práticas que destaco são:
PERGUNTA: Há um case que você possa nos dar como exemplo sobre isso?
Resposta: Na Prefeitura Municipal de Fortaleza, a Secretaria do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sepog) ficou responsável por coordenar o processo de transição do governo municipal (2020-2021). Estou como assessor de planejamento da secretaria e fui convidado para participar da equipe de transição. Em julho, tivemos a primeira reunião da equipe com a Secretária-Executiva do Planejamento e Gestão, responsável pelo processo na Sepog.
Em agosto, finalizamos o Plano de Transição, para o qual foram coletados diversos materiais de consulta de órgãos de controle como Controladoria Geral da União (CGU), Controladoria Geral do Estado do Ceará (CGE-CE) e Tribunais de Contas em vários estados.
Além disso, o próprio município de Fortaleza possui uma lei municipal de 2009 que disciplina o processo de transição de governo, que foi a base para o Plano elaborado. Em suma, a Transição prevê três eixos:
A ideia é avançarmos para que no momento após o anúncio do resultado oficial das eleições, o candidato eleito, independentemente de quem seja, possa indicar sua equipe e iniciar o processo de transição sem ruídos ou quaisquer dificuldades. Quem ganha é a cidade.
PERGUNTA: No cenário geral, quais são os maiores problemas nas questões de transição?
Resposta: Para que o processo de transição seja efetivo, eu diria que é indispensável o apoio da alta gestão. A informação é o elemento mais importante do processo, e muitas vezes ela se encontra dispersa pelas áreas e unidades das secretarias. Com o suporte dos dirigentes públicos, a equipe de transição terá condições de acionar todos os órgãos necessários para que os dados mais estratégicos sejam coletados, compilados e disponibilizados.
Por ser uma atividade de natureza intersetorial, a equipe precisará ter acesso às pessoas-chave ou pontos focais em diversas instituições públicas para que receba o retorno de suas demandas dentro do prazo estabelecido no cronograma previamente estipulado.
Do ponto de vista normativo, é indispensável a observância:
PERGUNTA: Você é formado em Planejamento Estratégico, que é que o mais se precisa numa transição de governo. Como se faz para, tecnicamente, entender os pontos a serem abordados numa transição?
Resposta: Embora a informação seja a matéria prima do processo de transição, as pessoas são o grande diferencial. É muito importante que os servidores estejam sensibilizados da grandeza deste momento para o amadurecimento do nosso sistema democrático, em uma visão mais abrangente. Bem como para a continuidade dos serviços essenciais prestados à população durante o período de mudança de secretários, dirigentes e coordenadores, numa perspectiva mais prática.
Além disso, haver uma equipe técnica de transição em que seus integrantes tenham competências complementares é desejável, dado a multidisciplinaridade das atividades:
- relacionamento com diversos atores;
- criação de repositório virtual;
- sistematização e análise de informações;
- e levantamento dos requisitos legais da transição são alguns exemplos.
Por fim, a visão de longo prazo, um elemento da Gestão para Resultados, deve ser permanentemente perseguida.
Os planos de desenvolvimento de longo prazo, como o Fortaleza 2040, são exemplos de fios condutores que poderão dar liga às ações da gestão atual com propostas do governante eleito, mitigando os possíveis problemas ocasionados por uma ruptura, infelizmente ainda comum em cenários de eleições polarizadas.
PERGUNTA: E, do seu ponto de vista, como se elabora planos que tenham menos chances de serem abandonados numa transição?
Resposta: Os planos precisam ultrapassar os limites dos governos e serem apropriados pela sociedade. Para isso, é indispensável que os processos de formulação de agendas contemplem metodologias participativas e ferramentas que estimulem o cidadão a opinar, criticar e validar as ideias apresentadas.
Além disso, a criação de plataformas virtuais com linguagem simples e observatórios de políticas são iniciativas contemporâneas amplamente utilizadas por governos preocupados com a transparência e controle social. A institucionalização por meio dos ritmos formais, como a criação de leis e decretos também são recomendados, embora que a simples edição de marcos legais não garanta, de fato, a execução dos Planos elaborados.
Uma forma de aperfeiçoar esse modelo seria estabelecer sanções aos gestores públicos que não cumprirem as ações ou metas contidas nos Planos, e fortalecer os conselhos municipais das políticas públicas setoriais, pelos quais a sociedade civil organizada poderá fiscalizar seu andamento.
Toda essa contribuição compartilhada por Edgard Lombardi traz grandes reflexões sobre a importância de se atentar para uma gestão transparente, com políticas e ações que visem o bem comum e as necessidades da sociedade. Nós da Radar IBEGESP destacamos essa preocupação, que ressoa a missão do Instituto: capacitar para proporcionar um trabalho mais eficiente na Administração Pública.
Inclusive, com o objetivo de colaborar efetivamente com esta pauta, já tratamos deste tema anteriormente, com o próprio Edgard Lombardi, em nosso Podcast Radar IBEGESP e também nos artigos sobre descontinuidade administrativa no Setor Público e a continuidade e a gestão da informação nas políticas públicas. Acesse e tenha ainda mais conteúdo sobre o assunto!
Tags:
Transição governamental e continuidade dos serviços públicos