Artigo de opinião*
É sabido o que vem enfrentando o gestor no que diz respeito ao financiamento da saúde. A partir da Constituição Federal (CF) de 1988 e com a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), as instâncias federadas do Brasil passaram a ter responsabilidade com as contrapartidas financeiras para saúde, mas até então isso acontecia de maneira centralizada na União. Quando se iniciou um grande processo de municipalização da saúde, para que além de outras responsabilidades, os municípios fossem gestores plenos de saúde, foram criados os Fundos Municipais de Saúde (FMS), com contas bancárias nas instituições federais (Caixa Econômica Federal – CEF e Banco do Brasil – BB). Essas contas contavam com várias rubricas de saúde e modalidades, sendo que o gestor as usava de acordo com a destinação legal de cada uma.
Aconteceu, também, entre 1997 e 2007 a aplicação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que foi criada para que esse valor arrecadado fosse aplicado na saúde. Em seu início sendo cumprida, mas que ao final foi desfeita, pois, foi constatada a utilização da arrecadação para um fim além da saúde.
A partir da década de 2000, se inicia fortemente o processo de regionalização, ou seja, a reorganização da oferta de serviços de saúde de maneira regional. Para isso, se fez necessária uma reorganização financeira para o ‘pagamento’ de um serviço prestado entre os municípios. Além do que, no final do ano 2000, há a promulgação da Emenda Constitucional 29 (EC 29), em que se definiu os percentuais mínimos, aplicados às três esferas de governo, em ações e serviços públicos de saúde (ASPS). Em 2006, com os pactos de saúde, se reestruturam essas necessidades, fazendo uma melhor organização para que o município ofertante do serviço receba por tal. Em torno do ano de 2008, acontece a Programação Pactuada e Integrada (PPI), em que há um planejamento e desenho de oferta da demanda de exames e serviços de saúde e, com isso, uma programação financeira regional, onde o valor em serviço a ser ofertado pelo outro já era descontado do FMS e ia ao ofertante (muitos chamam de teto financeiro adquirido), isso com base nos valores da Tabela SUS de procedimentos e exames (ou seja, valores estes do início dos anos 2000).
Além desta pactuação, os municípios recebem um teto fixo pelos serviços prestados existentes e um teto variável pela produção realizada, calculado pelo número de serviços existentes, procedimentos e ações realizados pela população. Além de suas contas de investimentos e de programas de saúde específicos.
Um grande desafio existente é que, atrelado a este teto está a defasagem dos valores da Tabela SUS, o que faz com que os municípios ofertantes de exames e serviços calculem o que vão oferecer aos municípios solicitantes pelo teto financeiro. Como isso funciona, na prática? Na Tabela SUS, há consultas que custam R$ 10-15,00 e, dificilmente, um município vai conseguir pagar por isso a um médico na consulta especializada. Logo, se o município ofertante paga pela consulta R$ 50-60,00 – reduzirá em número ofertado ao município que lhe ‘compra’ pela consulta/procedimento. Isso gera o aumento da demanda reprimida no município solicitante, a PPI e a Tabela SUS não são revisadas e fica o município que necessita nessa situação delicada, tendo que contratar novos serviços e exames para ofertar para sua população, pois, o SUS é direito de todos, dever do Estado e o acesso deve ser garantido.
Algo que merece ser mencionado, também, é que o valor recebido pelo município por um serviço de saúde existente há anos não é reajustado, ou seja, se um hospital de pequeno porte recebe um valor em média de R$ 230 mil/mês por em torno de 30 leitos, deve estar recebendo esse mesmo valor há mais de 10 anos – para pagar todo o custeio do hospital. E é sabido que o valor dos consumíveis em saúde, além do valor que se paga a um profissional médico e demais profissionais, só cresce.
Com tudo isso, Tabela SUS defasada, PPI sendo cumprida pelo teto financeiro, município tendo que contratar novos serviços e exames, valor recebido por serviço de saúde existente não reajustado há anos, houve a publicação da Emenda Constitucional 95 (EC 95) no final de 2016, onde congelou os gastos com a saúde por 20 anos, impossibilitando diversas ações de saúde, oferta de novos serviços, ampliação do acesso, melhoria da qualidade e valorização profissional.
Em 2017, todas as contas bancárias em saúde foram colocadas em dois grandes blocos de financiamento – de custeio e capital, no sentido de evitarmos tantas rubricas e regras para uso correto do recurso, que deve ser para pagamento de ASPS. Neste ano, gerou muita confusão para todos, pois, os valores foram somados e os saldos restantes deveriam ser usados até o final do ano mencionado, sendo passível de devolução à União.
Um outro financiamento que sofreu alteração foi o da Atenção Primária à Saúde (APS), com um programa agora chamado de Previne Brasil, onde diversos itens obrigatórios foram colocados em questão, estes deverão ser cumpridos, não mais se leva em consideração a população. A população adscrita precisa estar, devidamente, cadastrada, os grupos de doentes crônicos assistidos precisam de alguns critérios assistenciais obrigatórios. A informatização da saúde, alimentação de dados, oferta de novos exames e parâmetros, além de outros itens. Este desafio é lançado ao gestor em um momento de ‘respiro’ da pandemia Covid-19, onde as equipes de saúde estão se reorganizando ao retorno dos atendimentos e atualização dos cadastros individuais e familiares. Os gestores estão buscando caminhos para reestruturar a saúde de seus municípios, tendo que lidar com filas de espera de consultas, exames, cirurgias, procedimentos, entre outros.
Muitos aqui já ouviram a seguinte frase: Há falta de recursos ou o gestor está despreparado? Eu diria que necessitamos dos dois, atuar como gestor de saúde em nosso país é um desafio diário, há muitas normativas, regras de financiamento, leis para uso do recurso, fazer estudo de gastos com saúde, buscar fazer o uso eficiente do recurso destinado ao seu município, discutir redes de atenção à saúde, abordar regionalização e oferta de serviços, responder legalmente pelo FMS, ter que trabalhar com o aumento diário de novas demandas e necessidades, garantir o acesso aos serviços de saúde, ter que lidar com ações judiciais que só aumentam, atender a todas as solicitações, além de responder judicialmente pela saúde.
Quanto ao recurso financeiro, esse é muito aquém do necessário, como mostrado na exposição acima e um grande desafio do gestor é o pós-pandemia, onde se precisará fechar uma equação para o financiamento do SUS, com vistas para as pressões adicionais citadas e que se potencializarão a partir do início deste novo ano, e em oposição às normativas e propostas impostas na restrição fiscal pela EC 95.
Essa discussão do financiamento da saúde precisa estar no debate de todos os espaços da saúde, seja nas reuniões dos conselhos de saúde, seja nas de comissões, dos conselhos de secretários de saúde, nos espaços de mídias, na fala da sociedade civil. É necessário discutirmos estratégias, avançar neste debate e, quem sabe, colocarmos em pauta a renúncia fiscal e a tributação regressiva no país.
Precisamos defender e desenvolver o aprimoramento da capacidade nacional em tecnologias de saúde, ainda somos muito dependentes de insumos estratégicos internacionais, precisamos encontrar instrumentos que possam fortalecer essa política. Esse fato foi notado no enfrentamento à pandemia, onde o gestor enfrentou grandes dificuldades em equipar os leitos de cuidados intensivos e suprir mantimentos e medicamentos necessários nesta assistência.
Há que se discutir, também, a adequação das ofertas de serviços, ainda temos uma saúde muito voltada às questões agudas e, atualmente, enfrentamos muitas doenças crônicas e novas condições de saúde com o envelhecimento da população, além do enfrentamento da diminuição das desigualdades regionais (esta mostrada neste artigo ).
Um outro ponto importante de discussão é a nossa capacidade de incorporação tecnológica e da oferta de serviços, procedimentos e medicamentos, algo que precisa ser visto para além do complexo público-privado e pelos ângulos da regulação.
Enfim, sabemos que não há entendimento sobre definirmos um teto de gastos para a saúde, para produzir melhor os serviços de saúde, você precisa de mais recursos, e não menos. Ao invés de cortar recursos financeiros e organizacionais do SUS, precisamos discutir a questão das despesas financeiras e dos gastos tributários. O modelo atual vigente, infelizmente, favorece o sucateamento do SUS, aumento de demandas e necessidades, dificuldades no acesso, aumento da judicialização de ações e serviços, programas e serviços de saúde fragilizados, defasagem salarial dos profissionais, desassistência de saúde em muitos serviços, gestores desmotivados.
Precisamos de uma discussão ampla de necessidades de saúde, a partir dessas reformas no financiamento e queda da EC 95, pois, para termos um sistema de saúde que busca ser igualitário, universal e integral, seja da atenção primária até ao serviço mais especializado, é necessário pensar em mais recursos, uma sociedade civil mais participativa e essa temática em todos os campos e domínios de debate disponíveis para a saúde pública que conquistamos na CF 88 e que buscamos defender a partir dos princípios e diretrizes do SUS.
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Autor:
Ana Lígia Passos MeiraTags:
Financiamento, Matérias, Recursos, Saúde, SUS