*Artigo de opinião
Conheça os principais desafios enfrentados pelos gestores para a reestruturação da saúde pública depois de dois anos de pandemia
No final de 2019, o mundo passou a conhecer um novo vírus, o SARS-CoV-2, da família dos coronavírus que, infectando o ser humano, causa a doença chamada Covid-19. Esse vírus se espalhou rapidamente por todo o mundo, fazendo a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar estado de pandemia (quando a doença está espalhada em todos os continentes e em números altos na população), orientando a todos os países a tomarem medidas sanitárias urgentes no combate ao novo vírus.
A Covid-19 chega ao Brasil em fevereiro de 2021, por um brasileiro que acabava de chegar da região da Lombardia, na Itália (região que sofreu bastante com o número de casos novos e mortes neste período). A partir deste caso, rapidamente, começou-se a diagnosticar novos casos no Brasil e em regiões diversas, levando à contaminação comunitária (quando há transmissão do vírus internamente no país e entre sua própria população), o que fez o governo federal decretar situação de emergência sanitária e alertar a todos os estados sobre a tomada de medidas sanitárias urgentes e emergenciais para o combate ao coronavírus.
Foram dois anos bem intensos até os dias atuais, durante os quais o comércio e diversos outros serviços considerados não essenciais precisaram ficar de portas fechadas, os trabalhos foram se adaptando ao home office. Inclusive, o turismo foi afetado, pois a rede hoteleira estava entre os serviços que fecharam, até porque foi necessário evitar a circulação de pessoas.
A saúde teve, nos seus últimos anos, um de seus maiores desafios: ampliar o seu potencial de resposta em atendimento e internamento nos hospitais, em tempo recorde. Além disso, profissionais da saúde tiveram que aprender a lidar com a Covid-19 em dias e semanas. Alguns serviços de saúde tiveram que ampliar a sua capacidade de leitos e atendimentos de urgências, alguns outros serviços foram abertos (exemplo, hospitais de campanha) para atender aos casos crescentes da doença e aos seus agravamentos, e estes aconteciam em questão de horas e dias.
Mesmo vivenciando tudo isso, a saúde precisou se reinventar, os gestores de saúde tiveram que tomar decisões de saúde em minutos, as necessidades de insumos, equipamentos, atendimentos, escassez de mão de obra qualificada, serviços, logística batiam à porta a todo instante. A população assustada e pedindo respostas dos governos, respostas estas que vinham mais das esferas estadual e municipal. Essas esferas sentiam e tinham o paciente/familiar em seu convívio diário.
Aos poucos, a atenção básica voltou o seu atendimento, como apoio/suporte às novas ações de combate à pandemia, o telemonitoramento de casos suspeitos e/ou confirmados da Covid-19, através de ligações aos pacientes em isolamento domiciliar. Em seguida, as unidades abriram para serviços de urgência e de atendimentos específicos. Uma categoria da atenção básica bastante afetada foi a do dentista, devido ao risco aumentado de transmissão (via oral) da doença. Os atendimentos foram suspensos e somente os casos de urgência eram atendidos.
As cirurgias eletivas foram canceladas, tanto devido ao risco de contrair a nova doença, como porque em muitos serviços de saúde os leitos cirúrgicos foram destinados para Covid-19 (era a prioridade do momento). A detecção precoce de casos relacionados à oncologia também foi prejudicada, vez que a prioridade do aparelho de tomografia era para o diagnóstico do novo vírus.
O acompanhamento das doenças crônicas e/ou outras necessidades de saúde, como por exemplo, a prescrição de terapêutica para o diagnóstico da doença passou meses suspenso, aumentando o risco da população ao agravamento da doença ou mesmo ao risco de hospitalização por sua complicação. Sem falar, no início tardio de tratamento para um novo diagnóstico de doença crônica.
Um destaque importante precisa ser dado que, muitos pacientes, curados da Covid-19 apresentam sequelas persistentes, momentâneas e/ou permanentes de saúde. Necessitando de atendimento de reabilitação e/ou suporte permanente de saúde (seja por exemplo, por se tornar um doente renal crônico, ou adquirir uma doença pulmonar obstrutiva crônica – DPOC, ou um déficit motor).
Passados dois anos de enfrentamento à pandemia, os gestores se deparam com filas de espera para cirurgias, para exames eletivos, consultas especializadas, tratamentos odontológicos, além de diversos pacientes necessitando de reabilitação pós-Covid.
No mês de abril de 2022, o governo federal encerrou o decreto de emergência sanitária internacional, o que pode vir a afetar o envio de recursos extras para a saúde, ou mesmo, impede que os estados e municípios agilizem os processos de compras e envio de insumos/equipamentos aos serviços de saúde, pois, os mesmos ainda recebem pacientes diagnosticados com Covid-19, que precisam de internamento, além de cuidados pós-Covid.
Os gestores têm que montar estratégias de ação em diversas frentes: reorganizar as filas de cirurgias, exames e consultas eletivas que estavam paradas, avaliando necessidades mais urgentes, reavaliando os pacientes (pois, uma necessidade de 2020 do paciente, talvez não mais exista em 2022), reorganizar os serviços e reestruturar suas equipes de saúde.
Os pacientes necessitam da continuidade do cuidado de sua doença crônica, logo, os gestores precisam mensurar suas necessidades mais urgentes, aprimorar o sistema de regulação e solicitar que seus profissionais de saúde elenquem quem são os pacientes mais urgentes de atenção e atendimento.
As cirurgias já foram retomadas em muitos serviços, mas as filas são enormes e crescentes, e muitas são de urgência. Fazer com que os serviços hospitalares de referência funcionem, organizar as agendas (regulação), abastecer os hospitais com os insumos necessários, atentar para o teto financeiro a ser gasto, garantir o acesso do usuário, esses e vários outros são os desafios do gestor somente na área da demanda reprimida de cirurgias.
Muitos doentes tiveram que lidar com a demora para o diagnóstico de novas doenças, entre eles, o câncer. Os gestores devem garantir o acesso imediato desses casos aos médicos especialistas e os exames necessários para o diagnóstico e, consequentemente, o início do tratamento. Sem falar, que muitos municípios no Brasil não dispõem de serviços de oncologia, referenciando esse paciente para o município que o atende e que, também, atende a tantos outros no seu mesmo serviço. Ou seja, não só o gestor precisa agilizar esse paciente e garantir o acesso, como também o gestor deste município referência, junto com a gestão deste serviço referência de oncologia, precisam estar alinhados às necessidades e às urgências dos casos.
Para além destas demandas já conhecidas, tem uma outra que foi adquirida neste período de pandemia, as sequelas pós-Covid nos pacientes e que são inúmeras, das mais simples (fadiga, cansaço, fraqueza, falta de ar) a algumas mais severas (fibrose nos pulmões e/ou rins), perda de paladar e olfato (temporária ou duradoura). Outras que podem ser de natureza neurológica, hematológica, cardiológica e/ou psicológica. Há alguns autores que já a chamam de síndrome pós-Covid, em inglês Long COVID ou Late COVID (longa ou tardia). Isso tem afetado não só os pacientes, como as políticas públicas de saúde.
Muitos estudos estão sendo desenvolvidos para entender essas sequelas e como conduzi-las, porém, o que não se pode esperar é a oferta de serviços especializados e preparados para esta demanda e necessidade de saúde, para além de todas as demais citadas acima.
Um número considerável de pacientes vêm relatando apresentar uma ou mais sequelas pós-Covid, e essas podem se apresentar de forma variada em cada paciente.
Os gestores precisam, em caráter de urgência, repensar a sua rede assistencial de saúde, quais serviços conseguem ofertar, capacitar e preparar os seus profissionais de saúde para este novo perfil de paciente, além de planejar-se financeiramente para o aporte de necessidades de insumos, exames, medicamentos, leitos, reabilitação, atendimentos, entre outros, que tudo isto irá lhe demandar.
Sabe-se que muitos municípios no Brasil não dispõem de serviços especializados – de cirurgia, de oncologia ou mesmo de serviço apto a atender os pacientes pós-Covid –assim, se faz necessária a reestruturação das regiões de saúde, as novas pactuações de saúde, os novos arranjos de serviços, a discussão sobre a regionalização em saúde, a construção dessas redes de atenção e a conformação das linhas de cuidado, além do fortalecimento e/ou construção dos sistemas de regulação regional, como forma de proporcionar o acesso ao usuário e fazer com que os problemas de saúde não se agravem ao ponto de aumentar as hospitalizações por causas sensíveis à atenção básica, ou mesmo o aumento de óbitos por causas preveníveis. A importância da regionalização foi citada em artigo publicado no Radar IBEGESP (clique aqui para ler).
Por fim, há de organizar seu planejamento financeiro para que todas as necessidades sejam previstas e executadas nas gestões de saúde e um ponto importante a destacar neste sentido, é a Emenda Constitucional 95 (EC 95), aprovada em 2016, que impõe um teto de gastos para a saúde em seus próximos 20 anos. Logo, o teto orçamentário dos municípios, que já se via bem limitado e incipiente para atender às suas rotinas já existentes de saúde, precisa ser levado em consideração pelos gestores e estes precisam prever como conseguirão atender às novas demandas de saúde, garantindo o acesso dos usuários aos serviços e equipamentos necessários para cuidado de suas necessidades e doenças crônicas. Esse tema do financiamento foi abordado neste artigo.
Você, gestor de saúde, diariamente enfrenta muitos desafios com a pandemia ainda vigente e todas estas novas demandas à sua porta. Precisa-se estar atento e se manter em contínua atualização sobre planejamento em saúde, previsão orçamentária, possibilidade de gastos, indicadores de saúde, além das necessidades dos serviços e equipamentos, para que se possa garantir o direito constitucional de acesso à saúde e que este siga os princípios e diretrizes instituídos no Sistema Único de Saúde (SUS).
*Os artigos aqui divulgados são enviados pelos redatores voluntários da plataforma. Assim, o Radar IBEGESP não se responsabiliza por nenhuma opinião pessoal aqui emitida, sendo o conteúdo de inteira responsabilidade dos autores da publicação.
Autor:
Ana Lígia Passos Meira