Futuro das políticas de igualdade racial em um contexto pós-pandemia

Rodrigo Sanches

21 jun, 2022 ● 8 minutos

*Artigo de opinião

Confira um panorama das políticas afirmativas no Brasil atual e as perspectivas futuras

Quando o assunto é burocracia, temos opiniões acirradas historicamente. Um nível de burocracia que emperra o desenvolvimento de ações do Estado realmente é um problema concreto das sociedades humanas modernas. Os problemas contemporâneos se tornam cada vez mais complexos e de difícil resolução ao longo do tempo. À medida que os Estados não estão preparados para enfrentá-los, essa resolução se torna ainda mais desafiadora, como foi o caso da pandemia da COVID-19.

Devemos ter em mente que certas atividades são funções exclusivas do Estado e são questões estratégicas, que colocam em xeque a soberania nacional, como é o caso da preservação do meio ambiente, desenvolvimento científico e tecnológico, educação e infra estrutura, estes sendo alguns exemplos de políticas de Estado. Nesse sentido, a pandemia demonstrou a importância de um Estado que invista na ciência e na saúde.

Não foi o nosso caso. A experiência de viver no Brasil em uma pandemia tão violenta foi aterrorizante. Um país com dívidas históricas com o povo negro (mais da metade da população) e os povos originários, que os abandonou à própria sorte após 300 anos de escravização, que tem ignorado historicamente sua desigualdade estrutural e que ingressou no século XXI com uma situação social e econômica problemática, não poderia enfrentar uma crise sanitária dessa proporção sem uma presença forte do Estado, com a implementação de políticas públicas sociais e de saúde bem formuladas.

Ficou evidente que as graves consequências econômicas trazidas pela pandemia afetaram mais a população negra e indígena do que os outros segmentos sociais, aumentando sua vulnerabilidade em todos os pontos, da saúde à educação, passando também – e principalmente – pelo mercado de trabalho, pois são eles que têm menos acesso a oportunidades de empregos formais, o que possibilitaria a realização de uma quarentena segura (ACHEAMPONG, 2022). Sem uma política de Estado, coordenada federativamente, que garantisse a segurança alimentar e a saúde dos brasileiros, a população se viu entre o risco do vírus e o risco da fome.

Em pesquisa realizada sobre o trabalho no estado de São Paulo durante a pandemia, Acheampong (2022, p. 59) afirma:

Em termos raciais, os negros foram os mais prejudicados, tanto socialmente como economicamente, na pandemia [...] No setor público e na categoria de empregador, os negros são irrelevantes em comparação com as mulheres brancas e os homens brancos, respectivamente [...] No setor privado, apesar de os negros terem um percentual acima das ocupações anteriores, este ainda é inferior ao dos trabalhadores brancos. O ensino médio completo ou superior incompleto é destaque nesse setor. O trabalho doméstico, mesmo em momento de quarentena, foi realizado exclusivamente por mulheres, em especial as mulheres negras, o que mais chama atenção é o fato de haver pessoas exercendo essa atividade em plena pandemia, ou seja, a elite brasileira não foi capaz de realizar funções básicas de limpeza, cuidados ou de babá, e tampouco o governo de garantir que essas mulheres ficassem de quarentena. 

Desde o início da pandemia e das restrições de circulação e aglomeração impostas, a situação piorou, pois o setor informal, que ainda mantinha uma rentabilidade razoável para a população desde a crise de 2015/2016, se viu obrigado a parar de trabalhar, isso sem escolha devido ao risco da contaminação e com o agravante de que não se encontrou outra alternativa para substituir sua renda. A realidade é que todo o setor produtivo, de comércio e serviços foram afetados pela pandemia e tiveram que reorganizar suas atividades. Assim, 2020 e 2021 foram anos extremamente difíceis para os brasileiros.

Estamos em 2022 e a incerteza ainda ronda a vida da população nacional, o ambiente econômico e social em crise piora cada dia mais a qualidade de vida das pessoas. E agora, em um momento de retrocesso e crise política, ou seja, crise do Estado democrático de direito brasileiro, percebe-se um movimento de setores da sociedade para retirada de direitos básicos que ainda restaram para dar o mínimo de oportunidade para as futuras gerações. Projetos de setores do legislativo e das forças armadas brasileiras pretendem desmontar políticas afirmativas, como as cotas, e até mesmo implementar o fim do Sistema Único de Saúde e da gratuidade nas universidades públicas (TEODORO, 2022. BORGES, 2022. PORCELLA, FERRARI, 2022). Como se já não bastasse tudo que o brasileiro passou na pandemia, ainda temos o risco de perder uma das maiores políticas de saúde do mundo, um patrimônio brasileiro que foi tão reverenciado durante a crise sanitária por ter evitado ainda mais mortes.

O contexto é de retrocesso e de ataque às políticas sociais, ao patrimônio do povo brasileiro e à nossa democracia, com as políticas afirmativas também na mira desses grupos. Como dissemos em artigo recente publicado no Radar IBEGESP (SANCHES, 2022, leia aqui), foi a partir de um processo histórico de luta e mobilização, atravessando ditaduras e violência, que o movimento negro brasileiro logrou um sistema de políticas afirmativas que proporcionasse finalmente um acesso a oportunidades negadas ao longo de toda a história de formação do Brasil.

São exemplos dessas políticas: 1) o sistema de cotas em universidades públicas e no serviço público, 2) políticas de saúde desenvolvidas para atender necessidades específicas da população negra – desde a atenção básica até o política nacional de atenção integral à saúde da mulher, por exemplo – 3) e também a regulamentação da Lei nº 10.639/03 para ensino de história e cultura afrobrasileira no ensino básico. Esta última, mesmo tendo apresentado pouca adesão dos governos locais, ainda corre sério risco devido à recente aprovação do homeschooling. Transferir a responsabilidade do Estado de garantir o acesso à educação básica exclusivamente para as famílias é um processo que intensifica a evasão escolar – realidade agravada durante a pandemia – e, no final das contas, fortalece o movimento pelo fim da educação pública e de qualidade para toda a população.

Portanto, é urgente e imperativo que a população se mobilize contra esse movimento de volta ao passado e desmonte do Estado de direito brasileiro. Não é possível se recuperar da maior pandemia do século sem um sistema de políticas públicas que garanta a igualdade de direitos e acesso a serviços básicos para todos, independente de raça, gênero e condição socioeconômica. A oportunidade de um futuro melhor é direito básico de todo cidadão brasileiro.

Bibliografia

*Os artigos aqui divulgados são enviados pelos redatores voluntários da plataforma. Assim, o Radar IBEGESP não se responsabiliza por nenhuma opinião pessoal aqui emitida, sendo o conteúdo de inteira responsabilidade dos autores da publicação.