*Artigo de opinião
Confira um panorama das políticas afirmativas no Brasil atual e as perspectivas futuras
Quando o assunto é burocracia, temos opiniões acirradas historicamente. Um nível de burocracia que emperra o desenvolvimento de ações do Estado realmente é um problema concreto das sociedades humanas modernas. Os problemas contemporâneos se tornam cada vez mais complexos e de difícil resolução ao longo do tempo. À medida que os Estados não estão preparados para enfrentá-los, essa resolução se torna ainda mais desafiadora, como foi o caso da pandemia da COVID-19.
Devemos ter em mente que certas atividades são funções exclusivas do Estado e são questões estratégicas, que colocam em xeque a soberania nacional, como é o caso da preservação do meio ambiente, desenvolvimento científico e tecnológico, educação e infra estrutura, estes sendo alguns exemplos de políticas de Estado. Nesse sentido, a pandemia demonstrou a importância de um Estado que invista na ciência e na saúde.
Não foi o nosso caso. A experiência de viver no Brasil em uma pandemia tão violenta foi aterrorizante. Um país com dívidas históricas com o povo negro (mais da metade da população) e os povos originários, que os abandonou à própria sorte após 300 anos de escravização, que tem ignorado historicamente sua desigualdade estrutural e que ingressou no século XXI com uma situação social e econômica problemática, não poderia enfrentar uma crise sanitária dessa proporção sem uma presença forte do Estado, com a implementação de políticas públicas sociais e de saúde bem formuladas.
Ficou evidente que as graves consequências econômicas trazidas pela pandemia afetaram mais a população negra e indígena do que os outros segmentos sociais, aumentando sua vulnerabilidade em todos os pontos, da saúde à educação, passando também – e principalmente – pelo mercado de trabalho, pois são eles que têm menos acesso a oportunidades de empregos formais, o que possibilitaria a realização de uma quarentena segura (ACHEAMPONG, 2022). Sem uma política de Estado, coordenada federativamente, que garantisse a segurança alimentar e a saúde dos brasileiros, a população se viu entre o risco do vírus e o risco da fome.
Em pesquisa realizada sobre o trabalho no estado de São Paulo durante a pandemia, Acheampong (2022, p. 59) afirma:
Em termos raciais, os negros foram os mais prejudicados, tanto socialmente como economicamente, na pandemia [...] No setor público e na categoria de empregador, os negros são irrelevantes em comparação com as mulheres brancas e os homens brancos, respectivamente [...] No setor privado, apesar de os negros terem um percentual acima das ocupações anteriores, este ainda é inferior ao dos trabalhadores brancos. O ensino médio completo ou superior incompleto é destaque nesse setor. O trabalho doméstico, mesmo em momento de quarentena, foi realizado exclusivamente por mulheres, em especial as mulheres negras, o que mais chama atenção é o fato de haver pessoas exercendo essa atividade em plena pandemia, ou seja, a elite brasileira não foi capaz de realizar funções básicas de limpeza, cuidados ou de babá, e tampouco o governo de garantir que essas mulheres ficassem de quarentena.
Desde o início da pandemia e das restrições de circulação e aglomeração impostas, a situação piorou, pois o setor informal, que ainda mantinha uma rentabilidade razoável para a população desde a crise de 2015/2016, se viu obrigado a parar de trabalhar, isso sem escolha devido ao risco da contaminação e com o agravante de que não se encontrou outra alternativa para substituir sua renda. A realidade é que todo o setor produtivo, de comércio e serviços foram afetados pela pandemia e tiveram que reorganizar suas atividades. Assim, 2020 e 2021 foram anos extremamente difíceis para os brasileiros.
Estamos em 2022 e a incerteza ainda ronda a vida da população nacional, o ambiente econômico e social em crise piora cada dia mais a qualidade de vida das pessoas. E agora, em um momento de retrocesso e crise política, ou seja, crise do Estado democrático de direito brasileiro, percebe-se um movimento de setores da sociedade para retirada de direitos básicos que ainda restaram para dar o mínimo de oportunidade para as futuras gerações. Projetos de setores do legislativo e das forças armadas brasileiras pretendem desmontar políticas afirmativas, como as cotas, e até mesmo implementar o fim do Sistema Único de Saúde e da gratuidade nas universidades públicas (TEODORO, 2022. BORGES, 2022. PORCELLA, FERRARI, 2022). Como se já não bastasse tudo que o brasileiro passou na pandemia, ainda temos o risco de perder uma das maiores políticas de saúde do mundo, um patrimônio brasileiro que foi tão reverenciado durante a crise sanitária por ter evitado ainda mais mortes.
O contexto é de retrocesso e de ataque às políticas sociais, ao patrimônio do povo brasileiro e à nossa democracia, com as políticas afirmativas também na mira desses grupos. Como dissemos em artigo recente publicado no Radar IBEGESP (SANCHES, 2022, leia aqui), foi a partir de um processo histórico de luta e mobilização, atravessando ditaduras e violência, que o movimento negro brasileiro logrou um sistema de políticas afirmativas que proporcionasse finalmente um acesso a oportunidades negadas ao longo de toda a história de formação do Brasil.
São exemplos dessas políticas: 1) o sistema de cotas em universidades públicas e no serviço público, 2) políticas de saúde desenvolvidas para atender necessidades específicas da população negra – desde a atenção básica até o política nacional de atenção integral à saúde da mulher, por exemplo – 3) e também a regulamentação da Lei nº 10.639/03 para ensino de história e cultura afrobrasileira no ensino básico. Esta última, mesmo tendo apresentado pouca adesão dos governos locais, ainda corre sério risco devido à recente aprovação do homeschooling. Transferir a responsabilidade do Estado de garantir o acesso à educação básica exclusivamente para as famílias é um processo que intensifica a evasão escolar – realidade agravada durante a pandemia – e, no final das contas, fortalece o movimento pelo fim da educação pública e de qualidade para toda a população.
Portanto, é urgente e imperativo que a população se mobilize contra esse movimento de volta ao passado e desmonte do Estado de direito brasileiro. Não é possível se recuperar da maior pandemia do século sem um sistema de políticas públicas que garanta a igualdade de direitos e acesso a serviços básicos para todos, independente de raça, gênero e condição socioeconômica. A oportunidade de um futuro melhor é direito básico de todo cidadão brasileiro.
Bibliografia
- ACHEAMPONG, I. M. Mercado de trabalho na era da Covid-19: um recorte da população negra no Estado de São Paulo. Tese de Conclusão de Curso (Ciências Econômicas). Departamento do Curso de Ciências Econômicas da Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, 2022. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/217366/acheampong_im_tcc_arafcl.pdf?sequence=4&isAllowed=y. Acesso em: 9 jun 2022.
- BOEHM, C. Pesquisa mostra que estudantes negros foram mais afetados na pandemia. Agência Brasil, novembro de 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2021-11/pesquisa-mostra-que-estudantes-negros-foram-mais-afetados-na-pandemia. Acesso em: 9 jun 2022.
- BORGES, P. Câmara Municipal de SP pode revogar as cotas raciais. Portal Alma Preta, abril de 2022. Disponível em: https://almapreta.com/sessao/politica/camara-municipal-de-sp-pode-revogar-as-cotas-raciai. Acesso em: 6 jun 2022.
- PORCELLA, I. FERRARI, L. PEC 206 quer cobrar mensalidade em universidade pública; entenda o que mudaria com fim da gratuidade. Estadão, maio de 2022. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,pec-mensalidade-universidade-publica-camara-peternelli-kataguiri,70004074735. Acesso em: 6 jun 2022.
- SANCHES, R. Histórico de Institucionalização das Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil. Radar Ibê, maio de 2022. Disponível em: https://radar.ibegesp.org.br/historico-de-institucionalizacao-das-politicas-publicas-de-promocao-da-igualdade-racial-no-brasil/. Acesso em: 6 jun 2022.
- TEODORO, P. Projeto de Militares quer bolsonarismo até 2035 e fim da gratuidade no SUS em 3 anos. Revista Fórum, maio de 2022. Seção Política. Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/2022/5/23/projeto-de-militares-quer-bolsonarismo-ate-2035-fim-da-gratuidade-no-sus-em-anos-117748.html. Acesso em: 3 jun 2022.
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Autor:
Rodrigo SanchesTags:
Igualdade Racial, Matérias, Políticas Sociais